| CRÍTICAS | Inadaptado

Existem duplas que só funcionam assim, juntinhas. Quando se separam até podem alcançar grandes feitos, mas normalmente nunca mais atingem a genialidade. Assim de repente lembro-me dos franceses Jean-Pierre Jeunet e Marc Caro, que depois de uma série de filmes incríveis (olá Delicatessen, olá A Cidade das Crianças Perdidas) nunca mais fizeram nada de extraordinário quando seguiram caminhos separados. E outro exemplo é o da dupla que me leva a escrever este prosa: Spike Jonze e Charlie Kaufman.

Depois do sucesso de Queres Ser John Malkovich?, os dois voltariam a repetir a parceria neste Inadaptado. No entanto, o argumento do filme parece ter sido arrancado a ferros. É que Charlie Kaufman viu-se perante aquele pesadelo de qualquer escritor, o da folha em branco. E então decidiu fazer aquilo que Federico Fellini fez no 8 1/2: transferiu esse bloqueio para o próprio filme. Não só conseguiu escrever um dos melhores filmes jamais escritos, como o fez dinamitando todas as convenções da escrita de argumentos, criando algo nunca visto, algo que, como se diz às tantas no filme, não acontecia no cinema desde que… Fellini, quem mais, inventou o mockumentário.

Kaufman utiliza então aquele truque recorrente de Woody Allen (outro felliniano) e projecta-se em Nicolas Cage, que faz mesmo de Charlie Kaufman, com todas as suas inseguranças (gordo, a ficar careca, tímido… apresenta-se logo a abrir), na sua tentativa de adaptar para cinema o best-seller de Susan Orlean (Meryl Streep) sobre flores. Já alguém devia ter criado um sistema de pontuação das interpretações de Cage segundo os seus penteados em cada filme.

A partir daqui, Inadaptado é como uma cebola. Um filme composto por várias camadas, que dialogam entre si, mas com diferentes leituras. O próprio título tem dupla interpretação: de um lado é a história de um argumentista a adaptar ao cinema um livro, por outro é uma metáfora à adaptação das espécies ao mundo, no seguimento da Teoria da Evolução de Darwin. E a tradução em português ainda lhe dá uma terceira leitura, a do freak, o inadaptado social que procura o seu lugar a aceitação geral para que também possa ser feliz.

Tal como Queres Ser John Malkovich?, o filme mergulha na cabeça de Kaufman, argumentista e protagonista simultâneo de Inadaptado num gesto meta-referencial super arriscado, se bem que aqui não o faz de forma literal. Ao mesmo tempo, seguimos a sua demanda em adaptar o primeiro filme sobre flores, sobre um botânico que rouba orquídeas (Chris Cooper no papel da sua vida, sem dentes da frente e insolente e genial em igual dose), que o obceca da mesma forma que obcecou Meryl Streep, a autora do filme – e que nós também seguimos, primeiro numa analepse que nos mostra como é que o livro nasceu e, depois, no encontro entre estas personagens e a de Nicolas Cage.

Como se isto não chegasse, há ainda o irmão gémeo de Kaufman (interpretado igualmente por Nicolas Cage, em modo Sofia Alves), um fura-vidas que tenta tornar-se argumentista como o irmão, seguindo todos os clichés do género. É uma crítica mordaz do próprio Kaufman ao mundo dos filmes, denunciando tudo o que não se deve fazer quando se escreve um argumento, contrariando essas mesmas regras no seu próprio filme e, depois, terminando tudo com esses mesmos clichés – sexo, crime, tiros, morte e perseguições de carro.

Parece muito confuso e, apesar do filme avançar e recuar no tempo, ter várias personagens e, no fundo, não ter uma intriga com princípio meio e fim, é tudo bastante simples. E com isto tudo chegamos ao último parágrafo e nem sequer falámos uma única vez do realizador, Spike Jonze. É que este é um filme de argumentista, que pertence inteirinho a Charlie Kaufman, e que Jonze se limita a ilustrar da melhor forma possível. Um Royale With Cheese e uma verdadeira lição de cinema (de escrita de argumento, para ser mais preciso).
Título: Adaptation
Realizador: Spike Jonze
Ano: 2002

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