| CRÍTICAS | Aquarius

Nos últimos tempos temos tido filmes de grande fôlego, que retratam vidas ao longo de décadas. Foi Boyhood – Momentos de uma Vida, que acompanhava uma família norte-americana ao longo de 12 anos, foi Moonlight que seguia a vida de um negro homossexual marcado pelas drogas num bairro de Miami desde a sua infância até à vida adulta e agora é Aquarius, que documenta a história de… um edifício de apartamentos(!) no Recife, desde o início dos anos 80 até à actualidade. No entanto, não é que esta seja a primeira vez que um edifício é o protagonista de um filme. Wim Wenders já o fez, por exemplo, com O Hotel. E a arte está cheia de exemplos semelhantes, como aquele romance incrível do Ivo Andric, em que uma ponte explica toda a história dos Balcãs ao longo de quase três séculos (olá A ponte sobre o Drina).

O Aquarius é então um antigo edifício de apartamentos à beira da praia, no Recife, entalado entre os modernos e altíssimos arranha-céus, que se encontra todo vazio a contar os dias até ser demolido pela imobiliária para dar lugar a mais outro arranha-céus igual aos demais. Todo vazio, disse eu? Mentira! Porque uma irredutível inquilina recusa-se a sair e a levar consigo as memórias de uma vida feliz com um marido que amou, três filhos, uma carreira de sucesso como jornalista e escritora e uma colecção invejável de vinis. Essa mulher é Sónia Braga e é, ela própria, um edifício também. Um edifício não, perdão. Um monumento!

Sónia Braga é um monumento do cinema brasileiro em particular e do cinema internacional em geral e, neste seu regresso ao grande ecrã duas décadas depois do seu último filme, ganha uma relevância especial e simbólica no filme. Aquarius ganha logo com esse carisma automático que a diva brasileira traz para o filme de Kleber Mendonça Filho. Ela é o próprio edifício de onde se recusa sair, assim como ela é o próprio filme. E não o que ela representa, simbolicamente falando, é também o seu corpo que actua, literalmente, com as suas marcas de guerra e de um cancro de mama vencido que Sónia Braga não esconde. Afinal de contas, ela foi um dos grandes símbolos sexuais de toda a história latina e não há de ser uma mastectomia que vai alterar isso.

Aquarius é assim também uma Sónia Braga de corpo inteiro, com 65 anos de enorme dignidade, que se despe, que vai para a cama, que fuma umas ganzas, que vive e que resiste. E, simbolicamente, Aquarius também encontra nessa resistência uma rima muda com a própria actualidade. De uma forma mais directa, Sónia Braga é um bastião que enfrenta o capitalismo galopante que não olha a meios para atingir os seus fins (e a imobiliária vai tentar de tudo(!) para a convencer a vender o apartamento), num filme para colocar lado a lado com o recente A Lei do Mercado, outra história de um homem que recusa colocar de lado a sua dignidade em favor do dinheiro; e de uma forma mais simbólica, Aquarius é uma metáfora para o impeachment de Dilma, que levou a que os produtores se apresentassem no festival de Cannes, durante a estreia do filme, com cartazes acusadores do golpe de estado que então estava a acontecer no Brasil e que, numa retaliação camuflada, levou a que este não fosse escolhido para representar o país nos Oscares deste ano.

Nesta espécie de cinema directo, Aquarius é um filme que não tem problemas em se demorar a contar o que tem para dizer, sem ser, no entanto… demorado (salvo o paradoxo). E para o auxiliar nessa tarefa, o realizador recorre a uma banda-sonora de eleição, com Gilberto Gil, Maria Bethânia, Roberto Carlos, que nunca é meramente ilustrativa. As suas letras têm sempre algo a dizer. É claro que a Kleber Mendonça Filho ajuda (e de que maneira) ter Sónia Braga como protagonista. E tal como é ela o prédio onde vive e o próprio filme, também o McBacon de Aquarius é todinho ele da diva brasileira. 

Título: Aquarius
Realizador: Kleber Mendonça Filho
Ano: 2016

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