| CRÍTICAS | Lucky

Lucky é o filme póstumo de Harry Dean Stanton, ele que nos deixou em meados deste ano já com 91 primaveras. Stanton, que fez carreira sobretudo como um luxuoso secundário, teve aqui oportunidade de se despedir com um filme feito à sua medida. Aliás, no plano final, Stanton quebra a quarta parede ao olhar directamente para a câmara e, quando olha para nós e a suspensão da descrença se vai, quem se despede já não é a personagem, mas sim o actor.

Lucky é então um filme sobre a mortalidade, que está para a velhice assim como As Confissões de Schmidt está para a meia-idade. Aliás, no filme do Alexander Payne, Jack Nicholson faz precisamente o mesmo, ao interpretar-se a si mesmo num dilema de meia-idade. Aqui temos Harry Dean Stanton, ou melhor, Lucky, um nonagenário solitário com mau feitio – mas que o próprio faz questão de diferenciar entre ser solitário e estar sozinho – que vive num lugarejo no sul dos Estados Unidos, enfiado numa rotina que lhe molda os dias: levanta-se, faz uns exercícios de ioga de cuecas, vai ao diner fazer palavras cruzadas, vê os programas de cultura geral na televisão durante a tarde e à noite vai a um bar beber um bloody mary e falar de trivialidades com os amigos.

Até que um dia a rotina é quebrada por um desmaio e Lucky choca de frente com a realidade: a idade não perdoa e a morte pode estar ao virar da esquina muito em breve. E, de repente, aquele homem aparentemente inabalável apercebe-se da sua dimensão humana. E tem medo. Ambientado no sul dos Estados Unidos, no ambiente dos westerns – a poeira, o deserto, os cactos… -, Lucky é como esse género cinematográfico que em tempos foi um dos ex-libris de Hollywood e que agora está em perda. Ou seja, é um filme sobre um tempo que está a terminar, um ciclo que se fecha.

John Carroll Lynch, outro daqueles actores secundários de luxo que aqui se estreia (e que estreia feliz) na cadeira de realizador (e que chama uma série de outros tantos secundários para os restantes papeis, de Ed Begley Jr. a Tom Skerritt), filma esta história com uma elegância quase minimalista, de quem andou a fazer uma dieta de Jim Jarmusch. A excepção é uma cena em que Lucky acorda a meio da noite, com uma espécie de ataque de ansiedade. Ao som daquela versão estrondosa do I see a darkness, pelo Johnny Cash, a cena chega quase a ser brutal, mas não deixa de parecer pertencer a outro filme.

Com uma mecânica narrativa quase artesanal, Lucky faz-se a partir da persona de Harry Dean Stanton e dos diálogos que vai mantendo, especialmente com os amigos no bar (onde se inclui David Lynch em carne e osso, no papel de um tipo que procura o cágado de estimação que fugiu(!); e, tal como o cacto que Lucky rega regularmente, o cágado pode servir também de metáfora ao protagonista do filme). No entanto, na maioria das vezes o mais importante até é o que não se diz e fica subentendido nas entrelinhas. E no final, Harry Dean Stanton fuma o enésimo cigarro, sorri para nós e abala. Para ir comer um McRoyal Deluxe.

Título: Lucky
Realizador: John Carroll Lynch
Ano: 2017

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