| CRÍTICAS | Instinto Fatal

Depois do desastre que foi Showgirls (a todos os níveis, excepto nos Razzies, onde continua a ser um all time favorite), o destino de Paul Verhoeven ficou praticamente traçado. Ainda voltaria a filmar mais duas vezes (a última das quais foi O Homem Transparente, esse sim, o verdadeiro desastre da sua filmografia), mas o holandês acabaria proscrito em Hollywood. Entretanto, nos últimos tempos, a sua obra tem sido recuperada, muito graças a Ela. E agora que o seu nome está reabilitado, é altura de reabilitar também o seu título mais famoso e, possivelmente, o que menos gente viu: Instinto Fatal.

Mais do que filme incompreendido, Instinto Fatal é um filme pouco visto. Toda a gente o conhece, toda a gente já viu a famosa cena do descruzar de pernas de Sharon Stone e passa várias vezes ao ano na televisão. Toda a gente já o comentou. Mas, na realidade, quantas vezes já o vimos mesmo? Instinto Fatal é, na maior parte das vezes, desconsiderado e reduzido a mero thriller erótico. E até aqui ele é importante. E não, não estou a falar do facto de Michael Douglas ter sido a primeira celebridade a assumir ser viciado em sexo. Estou antes a referir-me ao facto de, em plena epidemia da sida, Instinto Fatal ter recuperado o sexo no grande ecrã, enfrentando desconfianças, paranóias e muita desinformação.

Instinto Fatal abre com uma cena de sexo. Uma mulher loira, a quem nunca vemos a cara, está por cima de uma antiga estrela rock (Bill Cable), acabando por o furar repetidas vezes com um picador de gelo. Até ao derradeiro plano do filme, toda a gente (a polícia, liderada por Michael Douglas, e nós, espectadores) vai tentar descobrir quem foi a assassina. Todas as pistas apontam para a escritora de policiais Catherine Tramell (Sharon Stone), até porque um dos seus romances é sobre uma mulher que… mata uma estrela rock com um picador de gelo. Mas isso não será demasiado óbvio?

Instinto Fatal é, assim, um neo-noir, com todos os ingredientes do género. Há uma femme fatale, que manipula tudo e todos, e que é um poço de força, num dos grandes papeis feministas da sétima arte. Quando vai ser interrogada pela polícia, Sharon Stone não só domina a conversa a seu bel-prazer, cheia de referências sexuais nas entrelinhas, como não tem pejo em descruzar as pernas, sem trazer roupa interior por baixo. E Paul Verhoeven mostra-nos o momento em plano frontal, sem esconder nada. Com apenas uma cena, Sharon Stone ganhava a imortalidade na sétima arte e tornava-se na herdeira de Marlene Dietrich como femme fatale derradeira. Ou, pelo menos, até se enterrar num sem-número de filmes inconsequentes.

Paul Verhoeven domina os códigos do género com mestria e não os disfarça, exagerando-os até. A maioria dos interiores tem sempre a luz recortada por cortinas laminadas, a banda-sonora pode não ter jazz, mas é hipnótica, e, a primeira vez que vemos Sharon Stone, Verhoeven faz questão de terminar a cena com um plano da ponte de São Francisco atrás, em homenagem a Alfred Hitchcock. Afinal de contas, o mestre do suspense teria adorado este argumento, que tem a sua cara: uma mulher como raiz de todo o mal, um mistério movido a mcguffin – o picador de gelo – e até um momento A Mulher que Viveu Duas Vezes, com Sharon Stone e Jeanne Tripplehorn a confundirem-se, às tantas, como duplas uma das outra.

Michael Douglas também não sai isento desta contenda. Na boa tradição do film noir, também ele tem os seus próprios esqueletos no armário – umas baixas casuais num tiroteio na cidade e problemas antigos com o álcool e drogas -, o que fazem dele um alvo fácil de manipular. Especialmente se se for alguém bonito e escultural como Sharon Stone. Verhoeven esteve a ver todos os filmes de Hitchcock para fazer Instinto Fatal, mas também Chinatown. E depois encheu-o de sexo, dando bom nome a um género muitas vezes desprezado, o thriller erótico.

No final, o filme parece perder-se no seu próprio labirinto, até porque, se não fosse o plano final revelador, tudo ficaria eternamente em aberto e poderia pender para qualquer um dos lados – será Catherine Tremell a verdadeira assassina ou não? Pior que isso, é o facto da personagem de Sharon Stone terminar em perda, passando de uma posição de poder durante todo o filme para uma mais submissa, quando nada o fazia prever. Mas tudo isso são os pormenores que dão interesse redobrado a Instinto Fatal, um McRoyal Deluxe que necessita ser redescoberto com olhos de ver. E ouvido de ouvir, porque alguns dos diálogos são dos melhores que ouvimos desde… sei lá, desde Hitchcok, para aí.

Título: Basic Instinct
Realizador: Paul Verhoeven
Ano: 1992

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