| CRÍTICAS | A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça

A filmografia de Tim Burton sempre teve três influências principais: o horror gótico, de HP Lovecraft às produções da Hammer; o surrealismo mais onírico e fabulástico; e o expressionismo alemão. Burton já flirtou com todos eles, às vezes com mais força num do que noutro e outras vezes com vários ao mesmo tempo. E a vez que correu melhor essa aproximação ao terror gótico foi com A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça.

A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça, adaptação livre de Tim Burton do clássico do género de Washington Irving, tem Hammer escrito por todo o lado. E nem é pela curta aparição de Christopher Lee (a fazer aqui o mesmo que Vincent Pryce fazia no Eduardo Mãos-de-Tesoura) ou pela recuperação de Michael Gough, dois nomes que marcaram a filmografia da icónica produtora de filmes de terror. É antes pelo estilo, meio mumificado meio charmoso, que o realizador norte-americano sabe dar um toque especial ao filme. Em exemplos futuros, Burton ficar-se-ia sempre pela imitação mais ou menos barata, mais ou menos preguiçosa, de quem está a pisar as próprias pegadas (alguém mencionou Sombras da Escuridão?).

Outra referência incontornável em A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça é a de Mario Bava, um dos grandes mestres do giallo italiano. A forma como Burton transforma Ichabod Crane (Johnny Depp) num polícia tipo Sherlock Holmes, que utiliza como principal arma a sua mente e a ciência, fazem dele o arquétipo do herói de Bava, o racional que se vê dividido pelo sobreanatural. Ora bem, ao contrário do romance original, em que é um professor, o Ichabod de Tim Burton é um polícia que recusa a superstição e que é enviado da grande cidade para Sleepy Hollows, uma terreola onde vários cadáveres decepados têm surgido nos últimos dias. E dizem os locais que a culpa é de um cavaleiro sem cabeça que anda a vingar-se.

É claro que, especialmente mais para o final, o argumento irá mostrar-se um pouco datado, uma vez que Washington Irving é um daqueles autores que foi mais do que revisitado pelo cinema (e pela literatura) fantástica. Mas o que é incrível em A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça é a forma como Tim Burton ensaia todo aquele mundo, construído em estúdio, de luz recortada, influências do expressionismo alemão (óbvio!) nos interiores (e no tratamento da luz) e a piscadela de olho ao giallo (com uma cena que diz Mario Bava por todo o lado, quando, num flashback, Ichabod tem um sonho cheio de sangue com a morte da mãe numa máscara de bicos).

Burton não está sozinho nesta demanda. Tem sobretudo a ajuda dos actores, mais do que a da música de Danny Elfman, que tem aqui, provavelmente, a sua colaboração mais discreta. Johnny Depp faz de Johnny Depp, mas com a vantagem de não se refugiar nas máscaras e nos disfarces exagerados; Christina Ricci, curiosamente, surge loira, ela que tem no cabelo negro uma das suas características mais fortes, para funcionar como contraponto luminoso de todo aquele mundo de sombras; e Christopher Walken, na pele do cavaleiro sem cabeça (e com dentes afiados, nas cenas em que ainda tem cabeça), tem um dos seus papeis mais inesquecíveis sem ter sequer uma única fala (isto se não contarmos grunhidos e berros como falas).

Ver A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça é ver como Tim Burton era um realizador fácil de gostar, que nos agarrava com a sua cinefilia e com a forma como a reciclava em algo novo e seu. Actualmente, o seu cinema tornou-se num monstro que devorou o mestre, muitas vezes num exercício de autofagia. O McBacon de A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça serve, portanto, para recordar os bons velhos tempos. E para enterrar a Hammer e tudo o que de bom fez pelo terror e pela nossa educação no fantástico.

Título: Sleepy Hollows
Realizador: Tim Burton
Ano: 1999

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