| CRÍTICAS | Green Book – Um Guia para a Vida

Primeiro tivemos Amigos Improváveis, esse filme inspirador choninhas para toda a família de domingo à tarde. Com o seu habitual oportunismo, Hollywood logo tratou de fincar o dente num remake (que teve o pertinente título em portuguéd Novos Amigos Improváveis), mas ao qual o público se mostrou mais esperto do que costume e não ligou nenhuma. Por isso, agora chega-nos mais uma variação dessa história de amizade improvável entre dois homens – um preto e o outro branco, um rico e outro pobre, um culto e o outro inculto -, desta vez atrelado ao prestígio dos Oscares e igualmente alicerçado no sempre inspirador baseado em factos verídicos.

Esses factos verídicos é a história da amizade improvável que se forjou entre Don Shirley (interpretado por Mahershala Ali), um dos maiores pianistas de todo o sempre e, igualmente, o mais esquecido de todos, e o seu motorista-barra-guarda-costas Tony Lip (Viggo Mortensen), que contratou para o acompanhar numa digressão ao sul norte-americano no início dos anos 60, quando ainda havia segregação racial.

Don Shirley era um músico conceituado e respeitado nos círculos da elite nova-iorquina, mas no sul saloio dos Estados Unidos era apenas mais um preto. Podia encher as salas de espectáculo, mas fora do palco sofria como todos os outros pela melanina a mais na pele e tanto tinha que utilizar camarins à parte, como casas-de-banho no quintal. Por isso, ter um agiota por perto não era má ideia. Mesmo que Tony Lip, um italo-americano saído das mesmas ruas que alimentaram todo o cinema de Scorsese ou de Coppola, seja uma espécie de gigante gentil, com um coração grande e justo.

Uma das novidades de Green Book – Um Guia para a Vida em relação ao seu primo, Amigos Improváveis (ou mesmo com Miss Daisy, o seu parente mais próximo em termos temáticos), é a alteração das posições de poder. Aqui, é o negro quem tem o ascendente e, portanto, as situações de desigualdade serão vistas de outra perspectiva. Se bem que, desta vez, a coisa é bem mais complexa. Don Shirley, com três doutoramentos, licenciaturas e um virtuosismo fora de série ao piano, não tinha nada a ver com os negros do Sul, tornando-o duplamente segregado. Daí que a cena mais forte do filme seja o plano em que, à beira da estrada, Don Shirley encare um grupo de trabalhadores negros a cavar a terra, que o fitam igualmente com estupefacção.

São temas caros e que surgem numa altura extremamente actual (a sério, como é que ainda estamos a discutir estas coisas em 2019?), mas que Green Book – Um Guia para a Vida trata com ligeireza em meia-dúzia de vinhetas ilustradas com lugares-comuns, sempre fortemente sublinhadas pela banda-sonora manipuladora, a teimar em lembrar-nos quais as cenas em que devemos sentir-nos tristes. Peter Farrelly, homem da comédia mais desbragada (Doidos à Solta ou Doidos por Mary, por exemplo, feitos a meias com o irmão), sente-se por isso mais à vontade no registo do buddy movie, quando coloca aqueles dois homens de mundos diferentes em choque cultural dentro do espaço confinado do carro em que viajam. Pode não ser a descoberta da pólvora, mas é o melhor que veremos em Green Book – Um Guia para a Vida (isso e a banda-sonora).

O último terço do filme roça ainda levemente o paternalismo, fazendo de Green Book – Um Guia para a Vida a enésima variação do filme que nos ensina que ser racista é mau. Mas tendo em conta os tempos em que vivemos, os presidentes que elegemos e os comentários que lemos às notícias na internet, parece que essa mensagem tem que continuar a ser gritada cada vez mais alto. Mais amor, mais Double Cheeseburgers e menos ódio e menos racismo, por favor.

Título: Green Book
Realizador: Peter Farrelly
Ano: 2018

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