Em 1917, os bolcheviques derrubavam o último czar da Rússia e davam início ao processo que viria a instalar a União Soviética, o grande estado socialista que geriu a Europa do Leste e a Eurásia até 1991. Em Moscovo, todas as pessoas que viviam em casas grandes viam o proletariado a passar a gerir os condomínios e a transformarem T4 e T5 em vários T1. Porque não era só a enxada que passava a ser da comunidade, tudo era da comunidade. Abaixo a propriedade privada!
Filipp Filippovich Preobrazenski (Max Von Sydow) continua a viver e a trabalhar no seu apartamento luxuoso de várias divisões, graças ao privilégio da sua profissão. Não só é médico, como atende muitas pessoas importantes do partido, que lhe garantem protecção, para desagrado do comité central que gere o seu condomínio e que vê ali muito espaço para albergar famílias sem casa.
Contudo, a primeira parte do filme tem como protagonista um cão abandonado, cujos pensamentos nós escutamos como se fosse o Olha Quem Fala. É ele que, pelas ruas de Moscovo, percebe que a revolução já aconteceu, mas não para todos. Já dizia o outro que somos todos iguais, mas há uns mais iguais que outros. Algum tempo depois, após ser resgatado pelo médico Filipp Filippovich e baptizado de Bobi (que mais?), o cão irá envolver-se numa discussão com os outros cães abandonados, que o acusam de traição.
Já percebemos todos onde é que Dog’s Heart quer chegar. É um filme sobre a luta de classes, que utiliza a Revolução Russa para ilustrar as injustiças sociais de parte a parte. A história parte do livro homónimo de Mikail Bulgakov, o mestre russo que escreveu Margarita e o Mestre (se não conhecem, vão correr compra-lo!), que viu o regime soviético banir-lhe a obra e mante-la no anonimato durante várias décadas. Vá-se lá saber porquê, não é?
Mas Dog’s Heart não se fica por aqui e o fantástico entra em cena. O médico decide levar a cabo uma experiência inovadora e transformar o cão num… humano. De repente, Bobi passa a ser Bobikov (Cochi Ponzoni, com parecenças físicas com um jovem Robert Downey Jr.). Do ponto de vista científico é uma descoberta incrível, com a descoberta de um homúnculo. Mas do ponto de vista social vai ser uma dor de cabeça.
Bobikov revela-se um dandy boémio, difícil de educar e de se comportar de acordo com os padrões aristocratas pelos quais se rege Filipp Filippovich. E quando o partido comunista lhe começa a impingir os manifestos do Engels e a fazer-lhe a cabeça, Bobikov vai virar-se contra o homem que lhe deu, primeiro, uma casa e, segundo, uma vida. Estará Bobikov a morder a mão de quem lhe deu de comer ou, finalmente, é a revolução a cumprir-se?
Por entre a crítica social e a sátira apurada (não é A Morte de Estaline, mas há um par de momentos em que mete o dedo na mesma ferida), Dog’s Heart monta ainda uma excelente reconstituição de época, especialmente à mesa. Há sempre vodka, borscht e shashlyk servido às refeições porque, como se sabe, é à volta da mesma que a vida acontece. E há muito que acontece em Dog’s Heart, incluindo uma participação quase anónima, mas visível ao olho mais treinado de… Cicciolina. Juntem à ementa um McRoyal Deluxe e saem daqui bem servidos.
* Cuore di Cane é uma co-produção italo-alemã rara e difícil de encontrar, mas que pode ser visto gratuitamente na Cave dos Filmes Esquecidos
Título: Cuore di Cane
Realizador: Alberto Lattuada
Ano: 1976