Uma das homenagens mais bonitas que existem no mundo do cinema é a que Donald Sutherland fez a Nicolas Roeg, baptizando um dos seus filhos com nome do realizador. As más línguas dirão que Sutherland fez isso com todos os filhos, mas eu prefiro acreditar que isso deve ao facto de ele achar que Roeg foi o mais injustiçado dos realizadores injustiçados, um génio inovador que mereceria ser muito mais referenciado e que nem sequer a sua morte, há dois anos atrás, veio corrigir.
Numa filmografia de grande inviabilidade, Nicolas Roeg tem quatro títulos fundamentais. E Aquele Inverno em Veneza será, porventura, o mais consensual de todos. É precisamente o que tem Donal Sutherland e que levou a que, uns anos mais tarde, este viesse a chamar um filho de Roeg Sutherland. Mas também tem Julie Christie. Ambos têm uma cena de sexo que é a outra razão pela qual este filme é muitas vezes recordado, já que muitos garantem que foi mesmo consumada. Os dois garantem que foi apenas cinema, mas tendo em conta que Nicolas Roeg foi também o realizador de Performance, onde Mick Jagger e Anita Pallenberg viram ser criado o mesmo rumor, conseguimos identificar aqui um padrão.
Há um prólogo em Aquele Inverno em Veneza que podia terminar por ali, que nos dávamos por satisfeitos pelo filme. Numa casa de campo, Danolad Sutherland e Julie Christie convivem enquanto os dois filhos brincam cá fora. De repente, um pressentimento fa-lo correr cá para fora, mas já não chega a tempo de salvar a filha de morrer afogada. Roeg é o rei da edição e vai entremeando as duas cenas simultaneamente, fazendo o que faz Brian De Palma com o ecrã dividido, mas sem recorrer ao ecrã dividido. É quase um ecrã sobreposto. E a edição fragmentada pode ser rápida, mas nunca é epiléptica ou imperceptível, como as cenas de acção dos blockbusters da actualidade.
Este acontecimento vai perseguir o casal durante todo o resto do filme, mesmo que pareçam ter ultrapassado o trauma relativamente bem. Vamos encontra-los em Veneza, onde Sutherland está a supervisionar o restauro duma igreja. Mas não é só a água dos canais de Veneza que parece rimar com o episódio trágico; também há um vulto recorrente a usar uma gabardina vermelha, igual ao que a filha usava no momento fatídico, que teima em aparecer sempre pelo canto do olho. Se a isso juntarmos um estranho serial killer que anda pela noite veneziana e duas turistas escocesas médium que vão conhecer, a estranheza instala-se definitivamente no filme.
Aquele Inverno em Veneza é um filme inquietaste, onde uma nuvem negra vai-se abatendo lentamente sobre as personagens e sobre nós também. A tal turista escocesa médium alerta o casal para fugirem, que a tragédia esperam-nos em Veneza, mas Sutherland é um homem razoável, da ciência, que recusa acreditar em superstições. Mas a atmosfera asfixiante de Roeg e os momentos de suspeita que se vão sucedendo não matam, mas moem.
Além disso, existe outra personagem fundamental no filme e ela é… Veneza. Roeg evita todos os sítios turísticos da cidade e filma Veneza como esta nunca foi antes filmada. Nem voltará a ser! É uma Veneza escura, húmida e lamacenta de Outono, que é verdadeiramente habitada pelas suas personagens. Numa altura em que Veneza se tornou num parque de diversões para os milhões de turistas que a visitam por ano, transformando-se num simulacro dela própria, é incrível ver a sua influência para o resultado final de Aquele Inverno em Veneza, criando um certo gothic horror à italiana.
Obviamente que nem tudo é perfeito em Aquele Inverno em Veneza. Falta-lhe peneirar um pouco mais o argumento, por exemplo, ou que Nicolas Roeg não se entusiasme em demasia em avançar às vezes, para depois ter que voltar para trás – ele nunca teve grande respeito pela ordem cronológica da narrativa e aqui até faz algum sentido, pela tal queda de Sutherland pela previsão do que vai acontecer. Tudo isso faz parte do charme deste McRoyal Deluxe, um filme de terror que mistura o atmosférico com o psicológico como poucos o fizeram ate hoje.
Título: Don’t Look Now
Realizador: Nicolas Roeg
Ano: 1973