Heathers é um filme de culto que, como todos os filmes de culto, já passou por várias fases. Quando estreou, no já longínquo ano da graça do Senhor de 1989, foi acusado de ser um filme fascista, que promovia a matança escolar e o suicídio; anos depois, com a distância temporal que permite sempre ver as coisas de outra forma e à medida que os tiroteios nas escolas norte-americanas se foram sucedendo, começou a ser encarado como uma reflexão acutilaste sobre o problema da inclusão e integração das comunidades jovens ocidentais. E, actualmente, acaba de ser alvo de uma abordagem radical de Ian Svenonius, esse Slavoj Zizek do rock’n’roll, que o explora enquanto metáfora religiosa cristã-pagã (é em Censura Já, a colecção de ensaios traduzida pela Ondina Pires para a Thisco – comprem!).
Heathers é o filme de liceu para acabar com os filmes de liceu. É o filme em que dois rebeldes sem causa (Winona Ryder, cansada da vida falsa para ser uma das populares, e Christian Slater, o rebelde acabado de chegar) se juntam para eliminar as Heathers (Shannen Doherty, Lisanne Falk e Kim Walker), o grupo de meninas bonitas, e destruir as fundações daquele sistema hierárquico e segregador. O microcosmos daquele liceu acaba por funcionar como um espelho do macrocosmos que é a sociedade em geral, que fica marcada pela fala de Slater: esta é uma escola que se auto-destruiu, não porque a sociedade não quis saber, mas porque a escola era a própria sociedade.
O realizador Michael Lehmann pega em todos os códigos do género (incluindo as cores garridas, que Já Tocou acabaria por tornar obrigatórias) e implode-os por dentro, numa sátira feroz que coloca o dedo na ferida e escarafuncha com prazer. O humor é mórbido e negro, bem negro, tão negro que às vezes se torna desconfortável e não temos a certeza do que estamos a ver. Será propositado ou é involuntariamente irónico?
Quando estreou a confusão fez com que a tese da normalização da violência ganhasse, mas com o passar do tempo, depois da poeira assentar, percebemos todos que era tudo uma piada. Os grunhis, ao verem que o filme sugeria a morte dos miúdos populares como forma de sabotar o edifício social, vieram logo para a rua de archote na mão, e nem ficaram para ver o resto e perceber a mensagem. Mais ou menos como a música fictícia que é o hino daqueles miúdos durante Heathers: Teenage Suicide… e depois, entre parêntesis, don’t do it. Mas quem é que liga ao que vem dentro de parêntesis?
Numa altura em que se fala de saúde mental na comunidade jovem como nunca se falou, cortesia do novo coronavírus e do confinamento que daí adveio, Heathers já falava disso. E do suicídio. E do bullying. E da discriminação de género. E do fatshaming. Só que fa-lo através da matança como escape, como canalização de toda a teenage angst, que afinal não é tanto sem causa, mas antes uma consequência de um misto de paternalismo dos adultos e crueldade do sistema social escolar.
Heathers é ainda um filme do seu tempo – as roupas, os ponteados, as músicas… -, imortalizado por um casal de actores que são símbolos desse período de tempo, entre o final dos anos 80 e o início dos anos 90. Só é pena é que sejam os dois mais irritantes da sua geração. Sim, Winona Ryder e Christian Slater são chatos, chatinhos. Especialmente o segundo. E é precisamente isso que faz a escala parar no McBacon.
Título: Heathers
Realizador: Michael Lehmann
Ano: 1989