Solveig Nordlund sempre foi uma espécie de OVNI a trabalhar no cinema português, por se dedicar a géneros e temas pouco abordados nos nossos filmes: a ficção-científica e o thriller psicológico, assim como outras variantes do cinema fantástico. Agora que foi homenageada no MotelX deste ano, talvez seja altura de se tornar numa espécie de autora de culto, como se tornou nos últimos tempos António de Macedo (se bem que com corpos de obra bem distintos).
A Filha, um filme que levou pancada de meia-noite da crítica, aquando da sua estreia, tem tudo para se tornar num desses filmes malditos de culto. É a história de obsessão entre pai e filha, num thriller psicológico em crescendo, em que o primeiro, depois da perda da segunda, não consegue recuperar e cai num abismo de paranóia e ilusão. Solveig Nordlund, que além de realizar também co-escreveu o filme, conhece os códigos do género e, apesar de estes fugirem do seu controle na maior parte das vezes, assina uma trapalhada, mas uma bela trapalhada.
Vamos então por partes. Nuno Melo é um playboy famoso, um produtor de um reality show que explora a desgraça alheia, em que a Lia Gama entrevista jovens vítimas do desleixo e do abandono dos pais. Por isso, enquanto anda a viajar de avião ou a deitar-se com a Margarida Marinho, Nuno Melo pouco tempo passa em casa, acabando por desleixar-se com a sua filha. A sua vida é, portanto, um reflexo do seu próprio programa de televisão. E, no dia em que completa 18 anos, a pequena foge de casa.
Nunca vemos a filha de Nuno Melo. Nem sequer em fotografias, porque a mais recente que ele tem é de quando ela ainda andava no ciclo. Por isso, A Filha é um filme em perda. E mesmo que ele ande a vaguear pela noite lisboeta à sua procura, sabemos que é só uma questão de tempo até ele a substituir. E este lugar vai ser tomado por Joana Bárcia, uma dançarina de peep show disposta a tudo para entrar no mundo da televisão, que vai aproveitar a fragilidade de Nuno Melo para se fazer passar pela sua filha. E vai terminar encerrada em casa, como prisioneira da sua própria mentira.
Não só pelo suspense e pelo thriller, mas também pela temática da duplicidade, faz A Filha remeter-nos para a influência do mestre Alfred Hitchcock, nomeadamente A Mulher Que Viveu Duas Vezes. Também nos lembramos de Psico, pela obsessão entre filho e mãe, se bem que aqui a equação é invertida. Mas o filme que nos vem mais à lembrança é mesmo Paixão Selvagem, seja pelo sentimento de obsessão e de pertença de um pelo outro, como pelo ambiente meio psicótico meio onírico.
Solveig Nordlund nunca consegue explorar bem o ritmo e a quebra de sanidade de Nuno Melo que, com o seu jeito canastrão, também não ajuda. Mas quando o seu jeito exagerado e over-the-top se junta a algumas cenas mais intensas (quando a nova filha se recusa a comer e ele a faz engolir uma pratada de esparguete ou quando lhe corta as unhas pintadas para não parecer uma prostituta), A Filha ganha uns laivos perturbadores. É pena que depois isto não tenha correspondência durante todo o filme. Seja como for, este Double Cheeseburger está a pedir um remake com todas as forças. E que este Double Cheeseburger ao menos sirva para ser descoberto na filmografia nacional menos visível.
Título: A Filha
Realizador: Solveig Nordlund
Ano: 2003