| CRÍTICAS | Feliz Natal, Mr. Lawrence

Não foi só em Portugal, ainda a ressacar dos recém-conquistados ares de liberdade, que Nagisa Ôshima criou sensação. Pela primeira vez, o Ocidente fazia do Oriente um fenómeno de massas, fascinado não tanto pela história de obsessão de O Império dos Sentidos, mas principalmente pela parte erótica. Quem, nos anos 80 e 90, nunca viu às escondidas o filme nos ciclos do canal 2 (juntamente com Instinto Fatal e Ata-me(!), dois outros clássicos) só para ver maminhas, que atire a primeira pedra.

O Império dos Sentidos deu assim uma espécie de carta branca a Ôshima para fazer o seu primeiro filme em inglês. E, caso Feliz Natal, Mr. Lawrence não tivesse mais nada que interessasse, iria sempre ter lugar reservado na história do cinema e da própria cultura popular, devido ao seu elenco. Obviamente que não estou a falar do primeiro papel dramático de Takeshi Kitano, até porque na altura ainda ninguém tinha visto o Nunca Digas Banzai, mas sim de David Bowie e de Ryuichi Sakamoto, duas estrelas rock a estrelarem um filme de Hollywood.

No entanto, o protagonista do filme é Tom Conti, o Lawrence do título. Ele é prisioneiro inglês num campo japonês em Java, durante a Segunda Grande Guerra, e o facto de falar a língua local faz dele uma figura privilegiada. É o intérprete que faz a ponte entre os dois lados da contenda, mas dá-lhe também a melhor posição para observar tudo o que se passa, não só como narrador e cronista, mas também como uma espécie de oráculo.

Feliz Natal, Mr. Lawrence é, sobretudo, um filme sobre o choque cultural entre Ocidente e Oriente, mas é também sobre a obsessão, tal como era O Império dos Sentidos. As suas personagens não são de leitura simples e não se esgotam à primeira vista. Por isso, o filme ganha diferentes níveis de interpretação. Há também uma estranha tensão homo-erótica no ar, entre Sakamoto, o tirano sargento do campo, e Bowie, o novo prisioneiro que vem enfiar um pauzinho na engrenagem do funcionamento do campo.

Lembramo-nos de O Presidiário, pela chegada do prisioneiro insurrecto, e de A Ponte do Rio Kwai, pelo war movie com selo japonês, mas Feliz Natal, Mr. Lawrence é bem diferente. Tanto a nível temático, quanto formal, com a sua realização de planos fixos e longos, de quem andou a ver muito Ozu. Esse estilo, juntamente com o histrionismo dos actores japoneses, contrasta depois com o dos actores ocidentais, mas essa diferença é propositada e rima com o tema principal. O mesmo se passa com a banda-sonora electrónica – e anacrónica – de Sakamoto, que o transformaria num dos mais conceituados compositores para cinema nos anos seguintes.

Sem ser particularmente brilhante, Feliz Natal, Mr. Lawrence tem o seu lugar inscrito nos anais do cinema por mérito próprio. E nunca um filme voltaria a unir da mesma forma um rockstar ocidental com um oriental. Por tudo isto e mais um queijinho, merece o seu McChicken por inteiro.

Título: Merry Christmas Mr. Lawrence
Realizador: Nagisa Ôshima
Ano: 1983

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *