| CRÍTICAS | Alvos

Boris Karloff passou o último terço da sua carreira a fazer de Boris Karloff (quer dizer, de certa forma foi o único papel que fez em toda a sua vida, mas vocês sabem o que quero dizer), em filmes cada vez mais camp. No entanto, Peter Bogdanovich levou a coisa ainda mais longe e, num exercício meta-referencial até então sem igual, agarrou em Karloff e pô-lo a fazer de Karloff cansado de fazer de Karloff.

O jogo de espelhos de Alvos, o filme de estreia do então jovem Bogdanovich, não se fica por aí. O próprio realizador faz de jovem realizador, que depois de dois filmes com Karloff, se prepara para filmar o seu primeiro filme sério. Mas Karloff cansado de fazer de Karloff – e velho e doente – decide reformar-se antecipadamente, para desespero de toda a produtora. Entretanto, vêem-se excertos sem conta de O Terror, o filme de Corman com… Karloff e um jovem Jack Nicholson, que o Karloff e o Bogdanovich acabaram de fazer em Alvos e se preparam para estrear.

Alvos olha para si mesmo como dois espelhos que se reflectem um ao outro eternamente. Este diálogo entre uma antiga glória do cinema clássico com um jovem maverick cheio de ganas é uma metáfora à Nova Hollywood que acabava de chegar e se preparava para tomar de assalto os grandes estúdios envelhecidos e obsoletos. Mais tarde, Orson Welles convocaria o próprio Bogdnanovich para um exercício semelhante (mas trocando-se a si próprio por John Huston), num dos seus mais emblemáticos projectos inacabados, O Outro Lado do Vento. Quando o Karloff do filme diz que se vai reformar porque já não tem nada para oferecer e porque os os americanos se andam a matar aos mil (apontando uma notícia de um atirador em massa), serve também de metáfora aos movie brats, que vinham sacudir os alicerces do cinema clássico e abordar temas que até então eram… inabordáveis.

Mas Alvos não se fica por aqui. Paralelamente à história de Karloff e Bogdanovich, há ainda a de Tim O’Kelly, um jovem aparentemente normal, mas a passar uma crise, que se vai abastecer de um arsenal infindável, subir a um reservatório de água e começar a disparar indiscriminadamente. O’Kelly tem tanto de distúrbios mentais quanto de teenage angst, como se Bogdanovich tivesse visto Matou a Família e Foi ao Cinema ou o Assassinos Natos. A violência de Alvos é tão dura quanto a catarse pode ser (não é por acaso que Bogdanovich se foi aconselhar com Samuel Fuller), filmado inteiramente sem banda-sonora excepto a diegética. Michael Haneke gostou do que viu.

No final, as duas histórias vão-se cruzar e as diferentes camadas de leitura vão também ter conclusões distintas. O’Kelly troca o reservatório de água por um cinema drive-in (cenário que voltaria a ser determinante na obra-prima de Bogdanovich, A Última Sessão), onde Karloff está para apresentar o seu filme, e o encontro dos dois, mais do que uma passagem de testemunho, funciona como um agradecimento dos mais novos aqueles que lhes abriram as portas de Hollywood. E Bogdanovich faz, com aquele atirador a disparar por trás do ecrã de cinema, justiça poética. No entanto, ao contrário de Quentin Tarantino em Sacanas sem Lei, o cinema castigador de Bogdanovich serve para confrontar e provocar o público.

Roger Ebert, que não era propriamente apreciador de Alvos, considerava-o um filme mais interessante do que bom. Tinha razão, excepto numa coisa: Alvos é também um bom filme. E o melhor McRoyal Deluxe da carreira de Boris Karloff desde… sempre?, com direito a monólogo incrível no seu estilo característico.

Título: Targets
Realizador: Peter Bodganivich
Ano: 1968

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