| CRÍTICAS | Viver

Em 2022 parece que alguns realizadores sentiram a necessidade extrema de contarem histórias de velhos rezingões que redescobrem a sua própria humanidade e sentido da vida. Deve ter sido alguma coisa relacionada com a pandemia. E foi um desejo tão urgente que nem quiseram esperar para escrever uma história nova. Marc Forster (e Tom Hanks) decidiram refazer o noruhgês Um Homem Chamado Ove, enquanto que Oliver Hermanus (e Bill Nighy) optou por recuar mais um pouco e ir refazer Viver – Ikiru, de Akira Kurosawa. É precisamente sobre este último a que se dedicam as próximas linhas.

Viver é um filme de época, ambientado na Londres do pós-guerra. É, por isso, um filme que vai beber à velha tradição do filme de prestígio britânico, de tal forma que até abre com imagens de arquivo das ruas londrinas desse tempo, cheias de grão, que, por momentos, faz parecer que estamos a ver um velhinho serão de Britcom no canal 2. O protagonista de Viver é o senhor Williams (Bill Nighy), um velhota chefe do departamento de obras públicas da câmara municipal, tão divertido e cheio de vida que a colega Alex Ford o chama carinhosamente de senhor Zumbi. A grande questão de Viver há de ser só uma: foi o senhor Williams que se tornou num espelho do aparelho burocrático do sistema inglês ou este é o reflexo da personalidade inglesa? A resposta nunca nos será dada porque essa é precisamente a pergunta para um milhão de euros (ou de libras, neste caso).

O senhor Williams recebe então a dramática notícia de ter poucos meses de vida, a contas com um cancro terminal. É uma daquelas coisas que faz qualquer um reavaliar a sua vida, mesmo um tipo como o senhor Williams, que parece já estar morto por dentro há muito. Por isso, vai passar por vários estádios de alma. Primeiro tentará sucidiar-se, mas perceberá que não tem feitio para isso; depois decidir-se-á por ir divertir-se e compensar o tempo perdido, mas aperceber-se-á que já não se lembra como isso se faz; ainda tentará reconectar-se com o filho e a nora, mas são demasiados anos de incomunicabilidade e agora as pontes estão todas queimadas. Por isso, só no final encontrará a resposta ao que fazer com os últimos dias de vida. A razão para nos sentirmos completos e cumpridos é fazer o vem e, sempre que possível, a diferença. E é isso que o senhor Williams vai fazer.

Como qualquer filme de prestígio britânico, Hermanus filma Viver com serenidade e discrição. No fundo, à imagem de Bill Nighy, que é, na verdade, o próprio filme. Nighy tem aqui um daqueles papeis que podem marcar uma carreira provando que é um dos actores britânicos maus subvalorizados da actualidade. E é ele que mantém sempre Viver acima da mediania, em alto tour de force, mesmo quando o filme começa a resvalar em demasiada para o tearjerker do último terço. E ainda teve tempo para cantar, como se fosse uma versão mais velha do seu personagem de O Amor Acontece. Viver teve duas nomeações ao Oscar, mas o seu melhor atributo nem é sequer o de te recebendo um McCHicken deste vosso imodesto escriba; é antes o facto de possibilitar a redescoberta de um dos filmes menos lembrados de Kurosawa, o Ikiru – Viver.

Título: Living
Realizador: Oliver Hermanus
Ano: 2022

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *