| CRÍTICAS | Solaris

Solaris é muitas vezes conhecido como o 2001: Odisseia no Espaço russo, se bem que Andrei Tarkovsky sempre garantiu que só o viu já depois de ter feito o seu – e que o odiou. Também Stanislaw Lem, autor da obra original e provavelmente ressentido por não ter sido chamado para ajudar a adapta-la ao cinema, disse que não gostara do trabalho de Tarkovsky e que não se lembrava de ter escrito sobre “os problemas sexuais dos astronautas”. Enfim, ressbiamentos à parte, a verdade é que é impossível olhar para Solaris e não pensar em 2001: Odisseia no Espaço, seja pela proximidade temporal em que foram feitos, a temática semelhante ou nem que seja por aqueles 30 segundos em gravidade zero coreografados de forma muito bonita, como um bailado, ao som do compositor Eduard Artemyev.

No entanto, enquanto 2001: Odisseia no Espaço é todo ele gélido, formalista e futurista, Solaris é todo ele poesia, reflexão e contemplação. Não é propriamente o melhor exemplo da famosa técnica de esculpir o tempo de Tarkovsky, se bem que o russo gosta de se demorar aqui em longas cenas ou apontamentos exteriores (especialmente da natureza), como que a forçar a meditação. Tarkovsky começava a entrar aqui na sua fase da carreira mais existencialista e, por isso, o filme termina também em ambiente tétrico, com muito simbolismo, tal e qual o filme de Stanley Kubrick. No entanto, o russo olha mais para dentro, para a natureza humana e para um certo mal de vivre – e aqui não poderia ser mais russo, segundo uma ideia de literatura russa -, influenciando-se na arte enquanto manifestação do belo (em oposição ao belo da Natureza) e citando directamente Bruegel ou indirectamente Rembrandt. Aliás, anos mais tarde, Andrei Zvyagintsev, naquele seu óptimo O Retorno, recriava o seu Lamentação sobre o Cristo morto, que Tarkovsky também ensaia aqui.

Apesar de ser um filme futurista, a ficção-científica de Solaris podia ser a de hoje (se bem que antecipa, em décadas, os ecrãs planos e os home-videos), com Tarkovsky a fazer o mesmo que Godard fez no seu Alphaville. Aliás, enquanto que Kubrick, em 2001: Odisseia no Espaço, tentava recriar ao pormenor com uma obsessão perfeccionista como era ir ao espaço, a estação espacial de Tarkovsky é mais familiar, com uma pelete de cores mais quente e, digamos assim, inesperadas. Aliás, o filme procura jogar com este conjunto de cores, utilizando. preto e branco para os flashbacks (afinal de contas, as sombras ajudam sempre a estimular a nostalgia), as cores vibrantes para as cenas na Terra e os azuis e vermelhos para as cenas no espaço.

Solaris é então o nome de um misterioso planeta, totalmente coberto por água, que os soviéticos têm vindo a estudar nos últimos anos sem grande sucesso. É certo que aquela massa de água parece ser senciente, mas não há nenhuma evidência científica que o prove. Aliás, o relato do piloto Anri Berton (Vladislav Dvorzhetskiy), que ouvimos no início, e que testemunha ma espécie de horror cósmico muito lovecraftiano, é mais interpretado como alucinações paranóicas do que como realidade. Por isso, quando o psicólogo Kris Kelvin (Donatas Banionis) viaja até bordo para se encontrar com os três astronautas que ainda lá se encontram para decidir se mantém a missão ou a dá por terminada, não sabe muito bem o que esperar.

A primeira coisa que Kris Kelvin encontra, além de uma estação espacial meio abandonada, é um ambiente de paranóia e semi-loucura. Depois descobre que o seu amigo Gribaryan (Sos Sargsyan) cometeu suicídio. E, finalmente, começa a ver outras pessoas, nomeadamente a sua antiga amada, que cometeu suicídio há 10 anos atrás (Natalya Bondarchuk). Mas não é em direcção ao filme de terror que caminha Solaris. É que aquelas visões são manifestações físicas dos traumas de cada um daqueles homens e a de Kris Kelvin é a morte mal resolvida da mulher que amava há uns anos atrás. Rapidamente, Kelvin atira a racionalidade para as urtigas e decide aceitar aquela mulher que sabe que não é real, mas que está ali com ele (sem memória, sem noção da sua existência limitada para além daquelas paredes…), um pouco até mais depressa do que esperaríamos de um homem de ciência.

Antonioni, que no seu Profissão: Repórter reflectia se, caso separássemos o nosso corpo da cabeça, se diríamos “eu e o meu corpo” ou “eu e a minha cabeça”, gostou certamente de Solaris. Afinal de contas, a ideia é basicamente a mesma: será que amamos realmente uma pessoa ou amamos uma ideia nossa de determinada pessoa? É portanto uma reflexão sobre a existência humana, muito mais do que sobre a própria condição humana, que se centra sobretudo o filme, se bem que a sua exploração vai muito mais longe. No final, há uma espécie de twist que também agradou certamente a Cristopher Nolan (o final de A Origem é, de certa forma, um primo algo afastado) e que encerra este filme que é também uma trip, mas uma trip vagarosa, para irmos apreciando devagarinho. Solaris é um McBacon, mas em regime de slow food – para ir degustando, dentada a dentada, mastigando tudo muito bem, ao longo das suas quase três horas de duração. Poderia ter sido montado em menos tempo? Claro que sim, Soderbergh fê-lo décadas depois. No entanto, não seria a mesma coisa.

Título: Solyaris
Realizador: Andrei Tarkovski
Ano: 1972

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