| CRÍTICAS | Mar Adentro

Mar Adentro foi um fenómeno quando estreou, primeiro em Espanha e depois no resto do mundo, fascínio esse que acabou traduzido em vários Goyas e no Óscar para melhor filme estrangeiro. As razões eram simples: Alejandro Amenábar, apesar da curta carreira, era um dos realizadores mais promissores da nova vaga espanhola, inclusive com provas dadas internacionalmente (olá Os Outros); depois porque o papel prinicpal estava entregue a Javier Bardem, um dos mais respeitados actores em terras de nuestros hermanos; e por fim, talvez o mais importante, porque Mar Adentro é baseado num caso verídico que abalara recentemente a Espanha – o caso de Rámon Sampedro, um tetraplégico que procurou, durante quase três décadas, a morte assistida.

A história de Rámon Sampedro dava precisamente um filme e acabou por dar dois, um para a televisão e outro para o grande ecrã. Era um jovem marinheiro, cheio de força e de vida, que aos vinte anos já tinha dado a volta ao Mundo. Em plena flor da vida, o jovem calculou mal um mergulho e embateu violentamente contra o fundo do mar, partindo o pescoço e ficando confinado para o resto da sua vida a uma cama, dependente da ajuda dos demais. A sua vida passou a ser a sua cabeça, acoplada a um cadáver, que no entanto nunca o fez deixar de escrever, pensar e, sobretudo, lutar. Lutar contra a Constituição espanhola, por uma morte digna. Porque para alguém como Rámon Sampedro, aquilo não era viver.

O seu caso agitou Espanha, que acompanhou calorosamente o caso desse homem, que queria morrer dignamente, um desejo com trinta anos de imobilidade. As opiniões dividiram-se e o Estado espanhol recusou-se sempre a ceder, devido à inconstitucionalidade do seu pedido. Rámon acabou por morrer, mas como um criminoso, às mãos dos seus amigos.

Em Mar Adentro, Javier Bardem é Rámon Sampedro, que, numa metamorfose fantásica, envelhece vinte anos e confina-se a uma cama. Bardem tem uma interpretação bigger than life, em que consegue ser tudo o que quer apenas utilizando o pescoço para cima: expressivo, comovente, divertido, consciente. E apaixonado. E a sua prestação vale por si só o filme. Mas este tem muito mais para dar.

Com efeito, Mar Adentro é um drama convicto, com intenções lacrimejantes. É certo que o alterna com alguns momentos de diversão, mas não se esquiva ao melodrama. Rámon quer morrer e precisa de ajuda para isso. Entretanto, duas mulheres vão entrar na sua vida: a advogada Julia (Belén Rueda), que por a motivos pessoais, faz sua a causa de Rámon; e a ingénua Rosa (Lola Dueñas), que vai tentar mostrar a Rámon tudo o que faz merecer viver. No fundo, cada uma delas encarna, à sua maneira, os dois lados desta discussão que nunca alcançará consenso.

Para Alejandro Amenábar tudo é simples. Não se contém na personagem de Rámon nem tão pouco cede à fácil tentação de o transformar em mártir; filma-o, não como se ele fosse a medida do filme, mas como uma das suas personagens, no seu dia-a-dia e acabamos por tirar as nossas conclusões. Ou seja,se aquele homem deve ou não ver satisfeito o seu desejo. Aliás, Amenábar nunca se coloca num dos lados da barricada, limitando-se a dar vida ao que aconteceu. São as mulheres e a família que, apesar de dizerem pouco, acabam por dizer tudo no filme. O sobrinho Marc (Francesc Garrido), que é o mais alienado de todos, mas que acaba por desejar que a terra o engula por não ter percebido muita coisa antes; a resignada cunhada Manuela (Mabel Rivera), para quem a opinião de Rámon é suficiente; o inconformado José (Celso Bugallo), que ama tanto o irmão que não quer abdicar dele; e o pai (Tamar Novas), que apenas tem uma fala e que não necessita de mais – pior que morrer um filho, é um filho que quer morrer.

Mar Adentro é por isto um drama pujante, sem martírios, que faz do realismo o prato forte. Com um grupo de actores impressionanetes, em personagens cheias, Amenábar filma ainda um belo retrato da Galiza (que bem podia ser Portugal, tamanhas são as semelhanças) com uma sequência vertiginosa em que viajamos em voo rasante pela região, numa altura pré-drones. Mar Adentro é um fantástico McRoyal Deluxe, que não deve ser consumido antes de ir para a cama porque é bem pesadão. 

Título: Mar Adentro
Realizador: Alejandro Amenábar
Ano: 2004

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