| CRÍTICAS | A Ilha do Dr. Moreau

A adaptação de 1996 ao grande ecrã de A Ilha do Dr. Moreau foi um desastre de proporções bíblicas, que rapidamente tentámos esquecer. Mas o (incrível) documentário Lost Soul, espécie de making of comentado do filme, permite-nos passar a vê-lo sob um novo prisma. Continua a ser mau, mas agora é um glorioso desastre bíblico.

Contextualizemos: Richard Stanley era um promissor realizador que, depois de dois interessantes filmes independentes de terror (olá Dust Devil, olá Hardware), chegava a um grande estúdio de Hollywood, para concretizar o seu sonho de longa data de trazer para o grande ecrã o clássico da ficção-científica de HG Wells, A Ilha do Dr. Moreau. Com um grande orçamento e um elenco de luxo, com Marlon Brando e Val Kilmer (este último no pico da sua fama), Stanley viria a não ter unhas para essa guitarra e acabaria substituído por John Frankenheimer, também especialista em apanhar berbicachos destes a meio. No entanto, já era tarde demais e nem o veterano realizador conseguiu minimizar o desastre.

Com Lost Soul percebemos então o que se passou. Richard Stanley não aguentou a pressão enquanto Marlon Brando e Val Kilmer tentavam ver quem tinha a pilinha maior (com o primeiro a recusar-se a decorar as linhas do filme e o segundo a descobrir pela televisão que a sua esposa pedira o divórcio) e a produção do filme, que era de poucas semanas de filmagens, rapidamente escalou para seis meses(!). Os extras entretinham-se em orgias de sexo, drogas e álcool, Brando ficava obcecado pelo homem mais pequeno do mundo, Nelson de la Rosa, que promovia de figurante a sidekick pessoal, insistia em improvisar todas as suas falas e torna-las em reflexões sobre o calor e exigia ser filmado coberto de protector solar até aos pés. E Val Kilmer fazia birra e não saía do camarim. No final, espanta mesmo como é que Frankenheimer, o único com idade suficiente para já não se chatear com estas coisas, conseguiu montar algo minimamente coerente (atenção que eu disse minimamente).

A Ilha do Dr. Moreau é uma trapalhada gigantesca, com problemas de continuidade, diálogos de Brando sem pés nem cabeça, Val Kilmer num frete desgraçado e muita gente cheia de próteses, numa ilha da Indonésia em que estavam 40 graus à sombra. O curioso é que, depois de vermos Lost Soul, conseguimos sentir toda esta tensão no ar. Actores que não se falavam, realizador sem mão no seu elenco, um desastre anunciado a cada minuto… E, mesmo assim, não deixa de ser uma trapalhada extremamente entretida, no típico caso do tão mau que se torna bom. Confessem lá, quão fixe é ver Marlon Brando com uma versão miniatura de si mesmo a tocarem piano, numa cena tão falsa quanto o Cogumelo do Tempo e o Calcitrim juntos? Fun fact: o Mini Me, de Austin Powers, tem a sua inspiração aqui.

O que é triste é que, os primeiros 20 ou 30 minutos, deixam ver que estava aqui um belo filme de ficção-científica, um série b de grande orçamento, sobre um náufrago (David Thewlis) que encontra um antigo Nobel da ciência (Marlon Brando) refugiado numa ilha deserta, onde enxerta animais com ADN humano em busca do ser perfeito. Claro que depois o seu exército de freaks rejeitados (uma versão moderna do Parada de Monstros) vão ganhar consciência de si mesmos e rebelarem-se, numa espécie de O Triunfo dos Porcos ou mesmo de O Senhor das Moscas. Também não deixa de ser curioso ver Marlon Brando a repetir ecos do seu Coronel Kurtz, uma encarnação do mal em modo eremita na selva.

Claro que isto é apenas o caderno de intenções, porque tudo o resto é, maioritariamente, um enorme WTF! Por exemplo, o que andam a fazer dois temas dos Einsturzende Neubauten na banda-sonora? Onde está Marco Hofschneider, cujo nome aparece no elenco, mas só o vemos numa cena? Porque é que Val Kilmer tem uma cotoveleira azul em algumas partes? E porque raio há uma cena em que Brando tem um balde na cabeça e Fairuza Balk despeja gelo lá dentro? Uma série de perguntas pertinentes, cujas respostas só encontramos se acompanharmos o Happy Meal com muita cerveja ou drogaria pesada. Mas que, mesmo assim, não deixa de ser um divertido mau filme.

Título: The Island of Dr. Moreau
Realizador: John Frankenheimer
Ano: 1996

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