O pior de Cafarnaum é a premissa, demasiado absurda para um filme que se quer sério. Como manter a suspensão da descrença num filme sobre um miúdo que quer processar os pais por ter nascido? No entanto, logo a seguir, a realidade presta-se a dar-nos a enésima lição de que é sempre mais estranha do que a ficção, com um indiano a chegar-se à frente com a mesma intenção.
Cafarnaum é a história de Zain (Zain Al Rafeea), mas podia muito bem ser a história da maioria de todos os outros da sua idade. Filho de uma família tão numerosa quanto pobre, Zain não vai à escola para poder trabalhar e ajudar no sustento precário da família, que vê na venda de uma das filhas que acaba de florescer, uma oportunidade de negócio. Zain, mais perspicaz e maduro do que seria de esperar de um miúdo de 12 anos (crescer à pressa nas ruas tem disto), foge de casa e acaba por ficar encalhado numa situação ainda pior (será possível haver melhor e pior dentro da tragédia?), a braços com o bebé de uma emigrante etíope (Yordanos Shiferaw).
Filmado inteiramente com não-actores (e Zain é um achado incrível!) e baseado exclusivamente em histórias que a realizadora Nadine Labaki descobriu nas ruas durante a sua pesquisa, Cafarnaum navega naquela ténue linha entre a exploração do miserabilismo gratuito. Mas Nadine Labaki consegue não cair nessa fácil tentação, principalmente à forma como filma, sempre com câmara ao ombro (há um único plano de drone apenas, que serve para ilustrar a história com aquele olhar de Deus que tudo observa; e que aqui somos nós). É um neo-realismo que nos coloca ao mesmo nível daqueles actores, dando uma escala humana ao filme.
Não há também qualquer tentação em glamourizar a favela, já que o que vemos são pessoas verdadeiras em cenários reais. Por isso, o absurdo da premissa – um jovem processa os pais por ter nascido – é apenas um gimmick que serve para espoletar a história e o próprio filme. Eram escusadas, portanto, tanto tempo em cenas de tribunal no acto final do filme, já que a missão de Cafarnaum era outra: a de nos fazer pensar em vez de julgarmos os não-privilegiados. O que, nos tempos que correm, tem muito que se lhe diga.
Filme duro, de carácter humanista, mas sem ser melodramático ou manipulador, Cafarnaum merece, sem dúvida, o McBacon. Já em relação à ovação longa em Cannes e ao respectivo Grande Prémio do Júri, bem… aí já temos algumas dúvidas.
Título: Capharnaüm
Realizador: Nadine Labaki
Ano: 2018