| CRÍTICAS | Encarnação do Demónio

Zé do Caixão, alter-ego de José Mojica Marins, é um dos maiores mestres do cinema de terror do Mundo. Brasileiro de gema, onde é visto como uma personagem de comédia, Zé do Caixão é um verdadeiro autor de culto, na verdadeira acepção da expressão, antes desta se ter banalizado e começado a ser atribuída a tudo e mais alguma coisa. Na net é possível encontrar vários artigos elogiosos espalhados pelos quatro cantos do mundo e até vídeos no youtube a actuar juntamente com os Heavy Trash, de Jon Spencer.

Zé do Caixão é conhecido por muitas coisas: foi o primeiro cineasta de longas-metragens no Brasil, assinou dois dos filmes mais dementes desta coisa do terror (olá À Meia-Noite Levarei Sua Alma, olá Esta Noite Encarnarei No Teu Cadáver), foi perseguido pela censura durante muito tempo, andou metido na indústria porno (fazer parvoíces de terror não põe comida na mesa), esteve esquecido durante vários anos e acabou por ser recuperado. Nada que nunca tenha conhecido a outros realizadores incompreendidos. A novidade aqui é que esse revivalismo aconteceu antes de morrer, cedo o suficiente para que pudesse completar a sua obra-prima, a trilogia do Zé do Caixão, com Encarnação do Demónio. E desta vez com dinheiro a sério – se bem que ainda longe dos grandes orçamentos, pelo menos já dá para contratar actores profissionais.

O Zé do Caixão-personagem é um coveiro macabro, sádico e cruel, sempre vestido a rigor com capa e cartola negras como a sua alma, que fala seeeempre de maneeeeira muuuito soleeeene, ateísta e obcecado em perpetuar a sua linhagem. Por isso, depois de ter estado preso durante 40 anos, Zé do Caixão só pensa numa coisa após ser libertado: ter um filho. O mais difícil é encontrar a mulher perfeita. E até a achar, Zé do Caixão e os seus seguidores vão deixar um rasto de mortes atrás de si.

Encarnação do Demónio surge em pleno século XXI como representante único do horror romântico do início do século XX, aquele que encontrou eco nos filmes de monstros do Lugosi ou do Karloff. Além disso, é ainda um tipo de cinema virgem, sem qualquer pretensão artística, fruto do mais natural instinto de fazer cinema de José Mojica Marins. E se isso pode resultar em verdadeiros desastres, o que é certo é que na maior parte das vezes resulta muito bem. E sempre de forma genuína, de quem não está a copiar ninguém.

Encarnação do Demónio faz ainda uma excelente reactualização do Zé do Caixão na sociedade actual. O senhor esteve encarcerado durante quatro décadas e agora encontrou um mundo completamente diferente, longe dos tempos em que vivia na roça e os camponeses acabavam sempre por se juntarem para o tentar queimar vivo. Agora, Zé do Caixão vai fixar-se na favela e, quando as mortes começam a surgir, eis que surge o BOPE. Exacto, Zé do Caixão meets Tropa De Elite.

É certo que tem um argumento bastante disconexo, mas de Encarnação do Demónio não se esperava literatura nem poesia, mas antes muito trash. E nisso, José Mojica Marins continua demente. Pode já não pôr actrizes a tirar insectos com a língua da cavidade ocular de um tipo zarolho, mas continua fiél às baratas, ao giallo, a violações com ratos, banhos de sangue, miúdas a enfiarem-se na carcassa de um porco, tipos a cozer a boca (literalmente) ou a pendurarem-se no tecto com ganchos nas costas. Tudo isto enquanto procura a mulher perfeita para cobrir.

As duas principais características do Zé do Caixão mantêm-se bem apuradas em Encarnação do Demónio: o desprezo pela religião, apesar de uma das melhores cenas do filme ser uma reconstituição do Purgatório, tudo muito dantesco; e a misoginia, em que as mulheres só servem para procriar ou para serem espancadas. Ou ambas ao mesmo tempo. Por fim, como que a dar um toque arty ao filme, existem uns flashbacks dos filmes anteriores, com as personagens a passarem para este filme, a preto e branco e tudo. Encarnação Do Demónio é o melhor filme da triologia e vale um (demente) Le Big Mac.

Título: Encarnação do Demónio
Realizador: José Mojica Marins
Ano: 2008

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