| CRÍTICAS | Um Eléctrico Chamado Desejo

Tennessee Williams foi provavelmente o melhor dramaturgo de sempre e Um Eléctrico Chamado Desejo é provavelmente a sua melhor obra. Elia Kazan foi provavelmente o melhor realizador de sempre e este é provavelmente o seu melhor trabalho. Marlon Brando é definitivamente o melhor de sempre e esta é provavelmente a sua melhor prestação. Em cima disso temos uma Vivien Leigh a esfolar-se para deixar na fita uma das melhores prestações de sempre. Era difícil que este filme não se tornasse no melhor filme de sempre. 

O filme acompanha a descida de Blanche Dubois (Vivien Leigh) à loucura. Blanche é uma trintona viúva que, perante o rasto de destruição que a sua vida parece deixar, opta por viver num mundo ficcional (I don’t want realism, I want magic), dependente da bondade de estranhos. Essa bondade, no entanto, só existe mesmo no mundo ficcional da sua cabeça. No mundo real, Blanche, aterrorizada com a sua idade e o seu aspecto, passa os anos entregando o seu corpo a quem o queira o usar, como o queira usar, por quanto tempo o queira usar. Não há nada debaixo do verniz, porque nem chega a haver verniz. Blanche é um ser humano permanentemente à beira de quebrar.

Perseguida em todo o lado, decide tentar a sua sorte em Nova Orleães (que melhor cidade para tal personagem?), indo viver com a sua irmã, Stella (Kim Hunter), que entretanto se casou com um operário chamado Stanley Kowalski. Kowalski, papel epicamente desempenhado por Brando, é o tipo de pessoa capaz de esmagar as ilusões de qualquer um, o tipo de pessoa que esmurra onde encontra vulnerabilidade, um detrito humano (mais animal do que humano, na verdade) que é, como Blanche, o produto do seu mundo. É fácil adivinhar o lastimável estado em que o choque entre estas duas personagens vai deixar Blanche. 

Para além da história e das prestações, o maior trunfo deste filme é a sua cadência. A cada passo que dá leva-nos consigo até estarmos de tal forma embrenhados que não conseguimos distinguir realidade de cinema. Acompanhamos o processo de enlouquecimento de Blanche Dubois com o pânico próprio de quem sabe o que lhe espera e não consegue fazer nada para o evitar. É, talvez, a maior raridade do cinema, esta capacidade de contar uma história no ritmo certo, e Um Eléctrico Chamado Desejo fá-lo com perfeição. O sufoco do calor do Louisiana arrasta-nos por uma história de violência, amor e sobrevivência com a mestria de quem não tem pressa, mas sabe que o tempo passa. Ou não fosse a passagem do tempo um dos temas centrais do filme.

A destruição de Blanche Dubois é a destruição da nossa infância, da nossa capacidade de acreditar que o mundo tem um plano para nós, da nossa capacidade de acreditar num outro mundo quando o que nós temos pela frente parece ser tão cruel. É por isso que sentimos a sua decadência de forma tão íntima: sabemos, ainda que inconscientemente, que estamos a assistir à destruição de uma mulher e à nossa própria destruição também. Dificilmente encontramos um filme mais violento do que este.

Este é um filme perfeito. Há outros, claro, mas este tem também uma ressonância emocional que mais nenhum conseguiu até à data. É por isso que merece um Royale With Cheese com um tornedó assado na brasa, uma cataplana de amêijoas e tudo. 

* por Diogo Augusto

Título: A Streetcar Named Desire
Realizador: Elia Kazan
Ano: 1951

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