| CRÍTICAS | Contágio

E, de repente, dois títulos de quem já ninguém se lembrava, tornam-se nos filmes mais importantes dos nossos dias, cortesia da pandemia do covid-19. Outbreak – Fora de Controlo e este Contágio são dois filmes muito parecidos, sobre um vírus novo e desconhecido que, num ápice, assola o mundo e ameaça-o como nada nunca antes visto, mas o segundo acaba por ter ascendente sobre o primeiro por uma simples razão: enquanto que, em Outbreak – Fora de Controlo, o vírus aparece vindo dos macacos, em Contágio este surge do cruzamento de um morcego e de um porco. Isto lembra-vos alguma coisa?

Além disso, Outbreak – Fora de Controlo é um filme mais dramático, mais hollywoodesco. Afinal de contas, Wolfgang Petersen, o realizador, é um tipo com um gostinho especial pelo filme-catástrofe. Já Steven Soderbergh prefere confiar mais no instinto de sobrevivência do ser humano que, perante situações de crise como esta, traz ao de cima o que de pior existe dentro de nós. E isso torna Contágio num filme mais perturbador.

É por isso que o vilão aqui é Jude Law, um blogger que não tem pejo em mentir e em manipular em nome dos leitores e seguidores do seu blogue. A desinformação, as fake news e os influencers são uma das grandes ameaças da nossa era e as pessoas que continuam a seguir o David Icke como o grande pensador do nosso tempo deviam de ver Contágio para ver se percebem e ganham vergonha na cara. E depois engolir todas as acusações de censura por o youtube ter apagado os vídeos dele.

Contágio é um filme-coral com um elenco de luxo que, como é natural nestes casos, acaba por não ter tempo para todos os seus actores. O mais prejudicado é Marion Cottilard, cuja personagem – uma trabalhadora da OMS que acaba raptada numa aldeia em Hong Kong, que não quer ser esquecida em nome das grandes potências e países ricos – passa completamente ao lado do filme. Bryan Cranston então nem sequer tem direito a ter o nome no poster, mas a sua personagem é pouco relevante para o desenrolar da história.

Não deixa de ser curioso que Gwyneth Paltrow seja paciente zero de toda esta epidemia. Afinal de contas, Paltrow é uma das grandes promotoras de pseudociências, wellness e outros produtos de banha da cobra do nosso tempo. Estar ligada ao vírus que mudou o mundo e a “normalidade” não deixa de ter um eco curioso no nosso tempo. Especialmente com a cena do epílogo de Contágio, que explica, de forma efeito-borboleta, como a intervenção humana na natureza pode acelerar e potenciar o aparecimento destes novos vírus. Agora pensem!

Contágio é um filme low-profile, naquele estilo muito… lustroso(como é que se traduz slick neste contexto?), com grande precisão científica, que ressoa de forma demasiado perturbadora com os nossos dias de covid-19. Está lá tudo aquilo que tão bem conhecemos: a taxa de contágio que é preciso baixar (o tal r(0)), o contacto físico que deve ser limitado, as máscaras, a sequenciação do vírus, a procura por uma vacina, as teorias da conspiração na internet, a corrida aos supermercados e o “estamos todos no mesmo barco, mas o meu barco é um iate e o teu é uma jangada feita com garrafões de 5 litros de água do Luso”. Ficam só a faltar os gráficos exponenciais, que todos aprendemos a ler como verdadeiros especialistas, em apenas duas 2 no facebook. Vale a pena (re)ver Contágio para termos uma ideia da imagem geral da pandemia que estamos a viver, sem nos confinarmos ao nosso quintal. Leve um McBacon para acompanhar, antes que o acesso aos alimentos comece a ser racionado também.

Título: Contagion
Realizador: Steven Soderbergh
Ano: 2011

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