| CRÍTICAS | Grau de Destruição

Dantes as distopias eram histórias perturbadoras, assustadoras e, de certa forma, inverosímeis, que nos deixam inquietos com o que poderia ser o futuro. Hoje em dia, as distopias deixaram de ser ficção e tornaram-se em documentários inóquos, que vemos com um encolher de ombros e um mero meh. Mais uma vez a realidade ultrapassou a ficção. E nós éramos felizes e nem sabíamos.

Grau de Destruição é a adaptação cinematográfica de uma das distopias clássicas da literatura: o Fahrenheit 541, de Ray Bradbury, a história de um futuro em que os livros se tornaram proibidos. Claro que ler essa distopia tem um impacto diferente, um efeito quase meta, porque sentimos uma certa transgressão em estarmos a ler algo sobre uma realidade onde é proibido ler. Mas François Truffaut também soube dar o seu toque pessoal ao filme, retirando todos os elementos escritos que poderiam existir até aos créditos finais. Aliás, os créditos iniciais são simplesmente lidos, para manter essa ausência permanente.

A história da existência do filme é, também ela, bonita. O mestre Truffaut sempre desprezou a ficção-científica, que considerava demasiado arbitrária. No entanto, assim que lhe falaram do livro de Bradbury e o leu, Truffaut apressou-se a dar o braço a torcer e não descansou enquanto não conseguiu financiar a adaptação. Mais tarde, a propósito do choque com o seu protagonista Oskar Werner, que fez correr muita tinta, o realizador chegou mesmo a afirmar que só não abandonou o filme porque passou demasiado tempo a tentar produzi-lo.

Estamos então num futuro hipotético, em que os livros foram proibidos, acusados de subverter, de transtornar e de despoletar demasiados sentimentos. Toda a gente sabe que uma população que não pensa é mais fácil de comandar e mais obediente. Por isso, esta realidade é bem maçadora, dependente de uma televisão que dita ordens sobre a forma de entretenimento inócuo (afinal, isto não é tão hipotético assim, vêem?). Para garantir a segurança do povo existem os bombeiros. Estes soldados da paz, que antes apagavam fogos, agora queimam livros, até porque as casas passaram a ser à prova de incêndios(!) e eles tornaram-se obsoletos. Só ninguém nos explicou é como é que as florestas deixaram de ser inflamáveis.

Montag (Oskar Werner) é então um bombeiro prestes a ser promovido, que cumpre o seu dever escrupulosamente. Mas quando começa a dar-se com uma vizinha com quem se cruza nos transportes públicos (Julie Christie, que tem papel duplo e faz também de sua esposa), Montag não vai resistir
à tentação e vai acabar por ler um livro. Começa por David Copperfield, de Charles Dickens, e daí nunca mais para, até à revolução final!

Truffaut segue a estratégia que o seu colega, Jean-Luc Godard, havia utilizado para contornar os limites do orçamento e da tecnologia no filme de ficção-científica Alphaville, e utiliza, sempre que possível, o modernismo para fingir que é o futuro. Daí que o mono-carril apareça tantas vezes, ou não fosse ele uma invenção do amanhã. Tão do amanhã que esse amanhã ainda não chegou. Basta ver o mono-carril de Paço de Arcos que, em 2015, encerrou, porque ninguém o entendia.

Contudo, acaba por faltar a Grau de Destruição uma maior consistência, especialmente no desenvolvimento interior de Montag. Este passa de um comportamento marcial e inquestionável para um espírito rebelde e revolucionário do dia para a noite e, a partir daí, o filme passa a ter dificuldade em se equilibrar. Estas coisas de viajar de mono-carril nem sempre são fáceis. Este McBacon não dispensa o livro original, mas é uma valorosa adaptação.

Título: Fahrenheit 541
Realizador: François Truffaut
Ano: 1966

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