Tal como o livro em que se baseia, Os Sete Pilares da Sabedoria, é difícil descrever Lawrence da Arábia. É um filme de aventuras ou um thriller político? É um filme biográfico ou é uma biografia ficcionada? E é um filme histórico sobre o Médio Oriente ou é apenas muito wishful thinking? No fundo, é tudo isso e mais ainda. Lawrence da Arábia é um filme de contradições e, todas essas camadas sobrepostas, acabam por ser o seu melhor trunfo.
A contradição de Lawrence da Arábia começa logo por contrariar todas as noções estruturais de narrativa e de forma, que supostamente garantem o sucesso de um filme. Tem quase 4 horas de duração, não tem personagens femininas (e, como tal, não há romance) e é um drama histórico, filmado numa paisagem exótica, sem âncoras de referência. Por outro lado, tudo isso faz com que seja um épico sem igual e, como tal, um oásis entre todos os outros filmes de género formatados pelo mesmo molde.
Lawrence da Arábia é a história biográfica (ou, pelo menos, como o próprio garante que aconteceu) de T. E. Lawrence, um literato e pouco convencional oficial inglês que, durante a Primeira Guerra Mundial, influenciou decisivamente o rumo do Médio Oriente, na guerra contra o império otomano. Lawrence, mais do que um patriota, era um cidadão do mundo, que soube desligar-se da sua visão eurocêntrica do mundo e colocar-se ao lado das tribos árabes para lutar por uma democracia assente nos valores humanistas.
Lawrence da Arábia pode ser um filme de aventuras em cenário das mil e uma noites, mas é na maior parte das vezes um western. Apesar de David Sean, com o seu perfeccionismo e orçamento super-inflacionado, captar na perfeição a vastidão e a aridez do deserto, Lawrence da Arábia vai beber aos mesmos símbolos do filme de género de cáubois: homens a cavalo (ou de camelo), mocinhos e bandidos e os autóctones selvagens a resistirem aos avanços do homem ocidental (eram os turcos, mas eram também os alemães) em nome do progresso e da civilização. A diferença é que, desta vez, os bons são os selvagens.
Contudo, o grande trunfo de Lawrence da Arábia não são as batalhas e os banhos de sangue, que enchem o ecrã em modo épico. T. E. Lawrence é a grande força motriz desta história, com todas as suas próprias contradições. Por um lado, era um militar pouco ortodoxo, com uma certa tensão homoerótica no ar com o seu novo amigo Sherif Ali (Omar Sharif), insolente e erudito, que colocava a sua integridade à frente dos valores da sua pátria. Por isso, quando se sente traído pelo seu próprio governo, que o engana sobre as suas reais motivações no território, Lawrence regressa do intervalo (sim, porque Lawrence da Arábia tem intervalo nas suas quase 4 horas, claro), fa-lo com os olhos raiados de sangue. Não é tanto a violação às mãos dos turcos que o mudam, isso é apenas o rastilho, mas sim a ideia de ter andado a lutar para nada. Por isso, quando regressa ao teatro de operações, conduz os árabes a Damasco para conquistarem o seu direito à terra pela força, deixando atrás de si um banho de sangue. E, adivinhem… T. E. Lawrence é novamente traído, desta vez pelos próprios locais, que não conseguem colocar de lado as suas diferenças tribais.
Lawrence da Arábia é assim um épico sobre a desilusão de um homem idealista, que quase alcançou os seus maiores sonhos, para depois chocar violentamente com a realidade. É também um épico romântico, já que o que leva T. E. Lawrence para o deserto da Arábia é o mesmo que levou Lord Byron para a Guerra da Independência, na Grécia: uma ideia de justiça poética. E, mais de 60 anos depois, Lawrence da Arábia continua a ser o épico dos épicos e o McRoyal Deluxe de todos os épicos.
Título: Lawrence of Arabia
Realizador: David Lean
Ano: 1962