| CRÍTICAS | O Estranho Amor de Martha Ivers

O film noir tem várias características comuns, mas apenas uma é omnipresente: a existência das sombras. E não são apenas as sombras reais, do preto e branco; são também metafóricas, que se estendem à psicologia dos seus personagens, que têm sempre fantasmas no armário, problemas mal resolvidos e motivações dúbias.

O Estranho Amor de Martha Ivers é um dos raros noirs em que, apesar de haver um crime (e é precisamente este acontecimento que vai despoletar tudo o resto), as suas sombras são sempre muito mais psicológicas do que outra coisa. Tudo começa como uma espécie de fábula infantil, como se estivéssemos a ver uma prequela de A Sombra do Caçador. Martha odeia a tia, a mulher mais rica da cidade, e depois de mais uma discussão após a enésima tentativa de fuga de casa, acaba por a atirar escadas abaixo. O caso é encoberto pelo pai de Walter (que vê ali uma boa chance de beneficiar com a fortuna da velha), se bem que o trauma nunca há de abandonar as crianças que assistiram à cena: Martha, Walter e Sam.

Todos sabemos que a morte pode ser um coming of age determinante (olá Conta Comigo, como estás? E tu, Uma Pequena Vingança?), mas O Estranho Amor de Martha Ivers propõe-se a olhar mais à frente. Por isso, dá um salto de 18 anos e vai reencontrar aqueles miúdos já adultos. Martha é agora Barbara Stanwyck e, além de ter herdado a fortuna da tia, casou com Walter, que é um muito novo e debutantes Kirk Douglas. Por sua vez, Sam é Van Heflin, um jogador e boémio, que regressa à cidade quase por acaso.

O reencontro dos três vai redesenhar o triângulo amoroso que havia ficado desfeito há 18 anos atrás e, pior que tudo, vai ressuscitar fantasmas enterrados. Como em qualquer noir, aqui não há inocentes, todos são vitimas e culpados ao mesmo tempo. Walter afoga a culpa do seu silêncio na bebida, Martha reprime o seu gesto sob uma capa gélida de quem não se pode dar ao luxo de ter remorsos e Sam recusa-se a viver sob as regras da sociedade que sempre lhe virou as costas. Por isso, a jovem Toni (Lizabeth Scott, uma espécie de versão genérica de Lauren Bacall), acabadiça de sair da prisão, vai acabar por levar de tabela, sem ter culpa nenhuma no cartório. Estas coisas têm sempre danos colaterais…

O Estranho Amor de Martha Ivers é um filme de várias camadas, para se ler sempre nas entrelinhas, que só peca pela realização de Lewis Milestone, tão certinha quanto tarefeira. Não é que haja qualquer mal nisso, mas acaba por manter o filme num furo abaixo do que poderia ter sido. Isso e o epílogo desnecessário é o que justifica o McChicken.

Título: The Strange Love of Martha Ivers
Realizador: Lewis Milestone
Ano: 1946

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