| CRÍTICAS | Wizards

Consta que, no final dos anos 70, John Boorman tentava convencer a filha de Tolkien a vender-lhe os direitos de O Senhor dos Anéis para adaptar ao cinema. Ralph Bakshi, fã de tudo o que tenha a ver com a Terra Média, ao saber disso e ao sentir-se indignado por Boorman querer compilar toda a trilogia num filme de hora e meia, foi a correr ter com a filha do Tolkien, oferecer-se para fazer a sua própria adaptação em animação. Esta, que tinha adorado Wizards um ano antes, não hesitou. A partir daí, a história é sabida: Bakshi fez O Senhor dos Anéis, marco nos desenhos-animados para adultos que viria a influenciar decisivamente A Irmandade do Anel de Peter Jackson e cuja única frustração era terminar no segundo livro. E Wizards? Cinquenta anos depois, quem é que se lembra dele?

De facto, Ralph Bakshi pode continuar a ser lembrado por O Senhor dos Anéis (e por Tygra, o Fogo e o Gelo), mas Wizards merece todo o nosso amor e carinho. Afinal de contas, é um marco na história da animação mais crescida e um excelente exemplar de word and sorcery que, apesar de pegar no legado de Tolkien, consegue reinventar o filme de fantasia a um novo patamar.

Estamos então na Terra, mas num futuro hipotético. Deu-se o holocausto nuclear e a humanidade foi dizimada, sobrevivendo apenas mutantes deformados, que se reproduziram afectados pela radiação. Milénios depois, pequenas zonas do planeta começaram a regenerar-se e a vida voltou a florescer. Mas, desta vez, em vez de Homens, elfos, duendes, fadas e outros seres mitológicos, seguidores da magia, da Natureza e do bonacheirão feiticeiro Avatar. Do outro lado, os mutantes eram aliciados pelo irmão gémeo malvado de Avatar, Blackwolf, que recorria à arqueologia para encontrar antigas armas, recuperar a propaganda nazi e as imagens de Leni Riefenstahl e impor um novo Reich.

Wizards arranja assim uma inventiva forma de criar a metáfora perfeita para o combate entre magia (leia-se natureza) e tecnologia, numa década que já estava na ressaca do flower power, mas que abraçava uma nova espiritualidade através da new age. E antecipava o ressurgimento do fascismo, o que visto às lentes da actualidade não deixa de se afigurar como um presságio assustador. Há ainda uma crítica velada ao materialismo (e ao capitalismo por vir), que se materializa numa cena, em que os maus invadem uma igreja dos elfos, onde guardam todos os objectos sagrados do passado e que incluem um sinal da Coca-Cola, a grelha de um Rolls Royce ou um Oscar.

Bakshi mistura ainda uma série de géneros e influências no seu tipo de animação. Há um estilo mais adulto e negro, especialmente em tudo o que rodeia o feiticeiro malvado (e que pode ser visto como um antecessor do Rei Chifrudo de Taran e o Caldeirão Mágico), mas não deixa de haver também um lado mais abonecado e cartunesco. Todas as figuras femininas são ainda altamente sexualizadas, com roupas diminutas e os mamilos sempre túrgidos, na boa tradição do seu Fritz, O Gato (afinal de contas, estamos a falar de um realizador que foi acusado de misoginia em vários filmes). E depois há cenários que são quase gravuras do Piranesi, alguma rotoscopia (que seria aprimorada no seguinte O Senhor dos Anéis), imagens reais cheias de filtros, muita música psicadélica e, claro, muita found footage nazi.

Toda esta amálgama de referências, estilos e géneros servem para compensar o argumento algo apressado e trapalhão, que não deixa de ser uma variação dos homens em missão de O Senhor dos Anéis. Avatar, o feiticeiro bom, mais o elfo Weehawk, a fada Elinore e o assassino que levou uma lavagem cerebral para ficar bonzinho, Peace (e que, apesar de não ter falas, é o único que aparece no cartaz do filme, com o seu cavalo de duas patas (porque isto era uma produção low budget e os cavalos com quatro patas exigem muito mais tempo e dinheiro para animar) que influenciou George Lucas para os seus próprios cavalos em O Império Contra-Ataca (e o mesmo Lucas haveria de recomendar um então desconhecido Mark Hamill a Bakshi para fazer umas vozes no filme)), têm que destruir o projector de cinema do feiticeiro malvado para o derrotar e acabar com a guerra entre tecnologia e magia, que está condenada a consagrar os primeiros vencedores se nada for feito. Wizards tem todas as marcas da animação de Ralph Bakshi e é uma excelente porta de entrada na sua obra. E este McChicken é uma das mais interessantes variações do cinema fantástico.

Título: Wizards
Realizador: Ralph Bakshi
Ano: 1977

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