A cena de abertura de Uma Miúda Com Potencial perturba-nos duplamente. Primeiro, pelo conteúdo. Numa longa sequência, somos introduzidos a Carey Mulligan, tão bêbada quanto sozinha numa discoteca para conseguir chegar a casa em segurança. Um tipo descarta os comentários machistas dos amigos e oferece-se para a levar a casa de taxi. A coisa parece que vai correr bem, mas o bom samaritano acaba, afinal, por aproveitar-se da situação, leva-a para casa e, em menos de nada, já está a tirar-lhe as cuecas. Felizmente há um plot twist: Carey Mulligan não está bêbada, está só a fingir.
A segunda coisa perturbado nesta cena é que ela se prolonga durante demasiado tempo, sem revelar essa surpresa do argumento. É que tudo em Uma Miúda Com Potencial parece indicar estarmos perante um feelgood movie, um teen movie ou um indie movie. Ou seja, tudo géneros que não implicam violação. Por isso, quanto mais a cena se estende, com Carey Mulligan totalmente vulnerável, mais impacientes começamos a estar. Felizmente há um plot twist. O tal.
É esse o grande trunfo de Uma Miúda Com Potencial, a forma como a realizadora Emerald Fennell casa dicotomias diametralmente (ou, pelo menos, aparentemente) opostas. Pelo tom, é um feel good movie, sobre uma jovem traumatizada por um acontecimento passado com a melhor amiga, que continua a impedi-la de seguir em frente e, por isso, aos 30 anos, continua a viver em casa dos pais e metida num trabalho num café sem futuro. Por outro, é um vengence movie em que essa mesma jovem atrai homens aproveitadores à noite, que buscam uma noite de sexo fácil com uma miúda semi-inconsciente, para lhes dar uma lição.
Emerald Fennell parece que andou a ver os filmes de vingança dos anos 70 (com Thriller – A Cruel Picture à cabeça), os indie movies da Miranda July ou do Zach Braff (olá Garden State?) e o Tully, para depois ir fazer uma masterclass com a Gillian Flynn e embrulhar tudo num thriller cheio de cambalhotas e cambalhotas à retaguarda (alguém mencionou Em Parte Incerta?). Com tanto twist no argumento, Uma Miúda Com Potencial é daqueles filmes que funcionam melhor à primeira e sem pensar muito no argumento, mas também é verdade que se podem tornar cansativo estarem-nos sempre a tirar o tapete debaixo dos pés. Já dizia a minha avó que ninguém gosta de espertalhões.
Mas Emerald Fennell parece ter noção disso e, por isso, recorre a duas coisas. Primeiro, a uma realização com pinta e personalidade, que mistura em iguais doses terror e doçura; e depois, a uma Carey Mulligan com uma personagem brutal, tão depreciativa quanto destrutiva, que consegue manter-nos interessados mesmo nos sub-plots mais aborrecidos (como a parte romântica, com o seu novo namorado, Bo Burnham). No final, no meio dessa montanha-russa de surpresas e emoções, Emerald Fennell consegue, com um golpe, matar dois coelhos com uma cajadada: destruir o patriarcado e colocar o dedo bem na ferida na rape culture que existe especialmente entre os adolescentes e universitários. Pode não ganhar o Oscar, mas ganha um McRoyal Deluxe, que é bem mais nutritivo.
Título: Promising Young Woman
Realizador: Emerald Fennell
Ano: 2020