| CRÍTICAS | Ninguém

No final dos anos 60 o rock tinha-se tornado tão inchado e balofo que já ninguém tinha paciência para ele. Bandas como os Pink Floyd, os Yes ou os King Crimson demoravam-se a mostrar o seu tecnicismo e virtuosismo em canções esticadas até lá do limite da paciência e apenas eles é que se divertiam a ouvir aquelas músicas. A vida era demasiado curta para se gostar de rock progressivo e o Marc Bolan, o glam-rock e os New York Dolls vieram salvar o dia, seguindo fielmente a máxima de Lou Reed: tudo o que tenha mais do que três acordes é jazz.

Busca Implacável está para o cinema de acção assim como o glam-rock está para o rock’n’roll. À medida que o CGI foi-se tornando cada vez mais realista, os blockbusters foram engolindo o cinema de acção, tornando-se num monstro cada vez maior, mais brilhante e mais barulhento. De repente, Liam Neeson veio salvar o dia, com um filme que recuperava a economia narrativa da série b e seguia o acrónimo KISS. Ou seja, keep it simple, stupid. Foi o suficiente para abrir a porta ao herói moderno de acção, John Wick, rei do sopapo que só queria cumprir a sua vingançazinha, sem tempo para traumas existenciais. Para isso já existem todos os heróis da Marvel.

Portanto, eis a sétima arte preparada para mais um arraial de porrada que até ferve. Ninguém vai buscar um actor relativamente desconhecido, Bob Odenkirk, aproveitando o seu sucesso em Better Call Saul, e transforma-o num herói de acção improvável (no fundo é o mesmo fenómeno que aconteceu a Bryan Cranston, seu colega em Ruptura Total). O responsável é Ilya Naishuller, o realizador russo que nos tinha dado o muito louco Hardcore Henry, filme de acção super-vitaminado totalmente em POV que merece ser mais vezes recordado.

Contudo, o grande trunfo de Ninguém, especialmente quando comparado com Busca Implacável ou John Wick, é que não segue a mesma fórmula básica do filme de vingança. Aliás, é precisamente o contrário. Bob Odenkirk é um zé-ninguém, que vive uma vida monótona e repetitiva entre a casa e o trabalho. Até que uma noite, uns assaltantes invadem-lhe a casa, ele congela quando tem a chance de acabar com um deles e torna-se numa desilusão para a família.

Rob Odenkirk não consegue ultrapassar esse episódio e, tal como Kevin Spacey em Beleza Americana, tem uma epifania de meia-idade. Agarra em si próprio, vai armar-se em vigilante e enche de porrada um grupo de bandidos russos num autocarro. Plot twist: afinal Odenkirk não era propriamente um zé-ninguém, mas sim um agente altamente treinado adormecido, que vai se meter com o gangster russo errado (Aleksey Serebryakov), um sociopata altamente cruel com quem vai desenvolve ruma guerra sangrenta, que vai deixar um rasto de destruição e um bodycount de perder a conta.

Ninguém é altamente estilizado e, tal como Hardcore Henry, tem momentos em que a violência se torna altamente estética. Ilya Naishuller, sem nunca perder o humor, avança no filme à medida que vai aumentando cada vez mais em loucura, até rebentar tudo numa catarse final, em que ainda é metido ao barulho um já muito velhinho (mas ainda aí para as curvas) Cristopher Lloyd e RZA. No final, Ninguém é um entretenimento extremamente saudável e um McRoyal Deluxe que abre portas aquilo que pode vir a tornar-se o nosso novo franchise favorito.

Título: Nobody
Realizador: Ilya Naishuller
Ano: 2021

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