| CRÍTICAS | Felicidade

Imaginem um daqueles episódios que vos aconteceram há vários anos atrás e, de quando em vez, vos assalta durante a noite e não vos deixa dormir. Por exemplo, aquela vez que chamaram mãe à professora, em plena sala de aula. E depois multipliquem a intensidade desse episódio por cem. Se pudessem transformar esse resultado num filme, o seu título seria Felicidade.

Não é por acaso que alguém o considerou, certa vez, o mais perigoso filme de sempre. Felicidade vai escarafunchar por trás da capa de normalidade da common people norte-americana, coleccionando uma série de polaroids instantâneos de vidas comuns, numa crítica social acutilante. É como um episódio dos Simpsons, versão maiores de 18 anos, um retrato negro da América comum. E um mosaico de vidas elementares, num subúrbio norte-americano igual a tantos outros. Vidas artificiais, sob capas de felicidade de plástico, que escondem perturbações, distúrbios e psicoses. E tudo isto ainda antes do Instagram ter vindo colocar mais um nível de normalidade sobre a anormalidade.

Todd Solondz, o ponta-de-lança daquilo que, ali no final do século passado, se convencionou chamar de new-geek cinema, monta em Felicidade um filme provocador, que nos deixa seriamente desconfortáveis. No seu estilo muito próprio, feito de silêncios, palavras engasgadas e outros embaraços, começa por abordar as relações amorosas entre homem e mulher, passa para as relações laborais e, quando menos esperamos, já está a falar-nos de pedofilia. E fa-lo com uma honestidade tão desarmante que, sem darmos por isso, acabamos por dar por nós a simpatizar com o raio do pedófilo (Dylan Baker, no papel mais corajoso da sua carreira) e não o queremos. Solondz prova, por a mais b, que o cinema também é tirar-nos da zona de conforto e fazer-nos sentir coisas com as quais não nos sentimos bem.

Tudo isso é montado a partir dos códigos de género da comédia: muzak ilustrativa, uma paleta de cores berrante e até uma shitty flute sempre que é preciso dar música a um momento romântico. Só que, com o seu humor negro (é mais um buraco negro), o resultado é uma feelbad comedy. Pelo caminho apanhamos um Philip Seymour Hoffman a masturbar-se enquanto faz chamadas telefónicas pervertidas anónimas (e a colar postais na parede com o seu sémen), Dylan Baker a ter diálogos estranhos com o seu filho de 11 anos sobre vir-se ou Jane Adams a apaixonar-se por um emigrante russo casado, que a rouba e pede dinheiro emprestado.

Apesar do que possa parecer, nada disto é gratuito ou sensacionalista. Aliás, torna-se mais chocante o retrato da meia-idade nos condomínios para reformados na Florida, onde vive Ben Gazzara e Louise Lasser, pela normalização que faz da felicidade, do que a luta pela normalização de todos os outros freaks, em luta constante com os lados negros das suas personalidades.

Felicidade seria assim o episódio dos Simpsons se Homer fosse pedófilo, se Marge tivesse as obsessões psicóticas de Laranja Mecânica, Lisa as perversões sexuais de A Pianista e se Bart fosse mesmo o disfuncional estereótipo do americano que temos ideia. Aqui, felicidade deve-se ler depressão. Felicidade é um festivo Dia de Acção de Graças, com um enorme peru recheado de valiums e prozacs. E onde está escrito peru, leia-se Royale With Cheese. 

Título: Happiness
Realizador: Todd Solondz
Ano: 1998

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