| CRÍTICAS | Benedetta

Não é assim tão incomum acontecerem gestos refundadores, que fazem com que a sua obra passe a ser encarada de outro prisma e com outros olhos. O mais raro é isso acontecer durante o seu período de vida. Foi o que aconteceu a Paul Verhoeven, realizador maldito em Hollywood, apelidado de pervertido, gore e sensacionalista, mas que recentemente acabou por ter retrospectiva em Cannes e tudo. O responsável por isso foi Ela, o filme que o juntou a Isabelle Huppert e que arrecadou Globos de Ouro, Césares, Goyas e até uma nomeação ao Oscar.

Por isso, é com novo fôlego que recebemos Benedetta, nova produção francesa do realizador holandês, que apesar de ser baseado em factos verídicos (muito livremente, claro), parece ter sido criado para si. Esta é a história de uma freira italiana do século XVII, Benedetta Carlini (interpretada por Virginie Efira com grande intensidade), que sofria de visões espirituais e religiosas, mas que teve de enfrentar a desconfiança do Papado, que acabou mesmo por a castigar e despojar da posição de madre superiora. Talvez porque veio-se a descobrir que esta mantinha uma relação homossexual com uma freira do convento, a irmã Bartolomea (Daphne Patakia). Claro que Verhoeven vai aproveitar estes dois tópicos e cruza-los, como se um dependesse intrinsecamente do outro e vice-versa.

Existe aqui muito material que já encontrámos anteriormente na obra do holandês. E nem sequer estou a falar daquele outro seu filme de época, o alucinado Amor e Sangue. Primeiro, volta a ser um filme sobre heroínas, como tem sido recorrente na sua filmografia. Incluindo a relação mais ou menos ortodoxa entre elas, como no Showgirls. Depois, Benedetta tem a mesma culpa (ou não, será que as alucinações são reais?) de uma Sharon Stone, em Instinto Fatal. E, claro, toda a questão religiosa, o sofrimento de raiz judaico-cristã e o sentimento de missão do escolhido (que não é necessariamente uma coisa boa), que é muito crístico, ou não fosse Verhoeven um estudioso auto-didacta do Jesus histórico. Ele até tem um livro sobre o assunto e há anos que tenta transforma-lo em filme.

Claro que Benedetta tem muito pouco de filme de época, na forma racional e laica com que se desenvolve o pensamento das heroínas do filme. É que a ideia aqui é partir de um caso real para projectar as questão do patriarcado que se continuam a sentir na sociedade actual, ou seja, na história de uma mulher que, por estar numa posição de poder, acaba perseguida e humilhada. A matriz de Benedetta é mais a do thriller erótico, pontuado depois pelas quentes cenas de sexo entre as duas freiras. Jess Franco teria ficado satisfeito .

Benedetta, que sempre teve um chamamento divino (a cena de abertura, com ela ainda em criança, a chegar ao convento onde o pai pagou a sua entrada), tem o condão de deixar a dúvida em aberto desde logo. Mesmo quando as suas visões de Cristo são sempre entre o gore e o sexual, a sua vocação nunca é posta em causa. A questão é se aquela mulher acreditava mesmo no que via ou se tudo não passou de um jogo e de um esquema, para subir na cadeia hierárquica e manter a relação com a freira Bartolomea. Verhoeven nunca nos dá a resposta a esta questão e cada um formulará a sua própria interpretação. Benedetta é provocador, por vezes até mesmo de mau gosto – há uma estatueta de um ícone esculpida em forma de dildo para prazer das duas mulheres, nem sequer duas décadas de nunexploitation teve coragem para isto -, mas é também arrojado, capaz de interrogar e de colocar as perguntas certas. Podíamos dizer que este é um McRoyal de um Paul Verhoeven definitivamente reabilitado, mas a questão é: quando é que ele fez um filme mau? (sim, a pergunta é retórica, mas vocês percebem onde quero chegar).

Título: Benedetta
Realizador: Paul Verhoeven
Ano: 2021

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *