| CRÍTICAS | 100% Camurça

Quentin Dupieux já nos mostrou que o seu cinema é feito de gimmicks. Uma graçola como ideia, da qual a maioria conseguiria fazer uma curta, mas que o francês consegue esticar até à longa duração. E, em geral, sem qualquer fastio. O primeiro que nos mostrou foi Rubber – Pneu, em que um pneu(!) começava a matar pessoas(!!), e o último foi Mandíbulas, em que dois amigos decidem amestrar(!) uma mosca gigante(!!) que encontram na mala do carro(!!!). Pelo meio, houve este 100% Camurça, o filme em que um homem fica tão obcecado pelo seu casaco de camurça que começa a matar toda a gente.

Mas espera, como assim?, perguntam vocês. Sim, 100% Camurça não tem que fazer propriamente sentido, já que é bizarro, sinistro e absurdo. Apanhamos já Georges (Jean Dujardin) de viagem, a caminho dum vilarejo francês no meio de nenhures para ir à casa de um velho onde gasta todas as suas poupanças num casaco de camurça com franjas, bem piroso, que nem sequer lhe fica bem (e é o número abaixo). Depois, com um “estilo de arrasar” (algo que está sempre a repetir), começa a ficar tão obcecado com o casaco que inicia diálogos com ele. E o blusão responde. Até que ele lhe diz quero ser o único blusão do mundo. E ele responde e eu quero ser a única pessoa do mundo com um.

Está lançado então o plano. Mas o absurdo de 100% Camurça não se fica por aqui. Georges, que arranjou uma câmara de filmar de bónus quando comprou o casaco, começa a filmar o seu dia-a-dia num fascínio voyeurista muito Peeping Tom, e começa a pagar aos jovens locais para entrarem no seu filme. Filma-os a jurar para a câmara que nunca mais usarão casaco, enquanto colocam os blusões na mala do seu carro, e ele arranca a grande velocidade. Mas rapidamente o dinheiro termina – mesmo depois de extorquir a empregada do bar local (Adèle Haenel) que é “contratada” para editar o filme – e a solução passa por ser matar toda a gente e roubar-lhes os casacos. E, para isso, Georges vai fazer uma espada(!) com uma das pás da ventoinha do quarto.

Por entre o surrealismo de um Buñuel em ácidos e a comédia absurda (há uns laivos de Samuel Beckett por ali), 100% Camurça é mais dadaísta do que niilista, pela forma como sobrepõe géneros aleatórios, quase sem terem nada a ver uns com os outros. Demora-se pelo thriller e pelo terror, sempre com um piano sinistro a fazer ambiente, mas no final já anda pelos territórios do western, com Georges totalmente vestido de camurça, no meio do mato, enquanto enterra blusões alheios. Por isso, 100% Camurça tem ar de pesadelo, daqueles que nos fazem acordar alagados em suor de susto, mas que depois começamos a pensar bem neles e acabamos a rir pela parvoíce de situações justapostas.

Mas por mais formalismo que Quentin Dupieux seja, 100% Camurça só é possível, obviamente, devido ao seu elenco de nomes sérios. Jean Dujardin pode até estar acostumado à comédia, mas é um actor de prestígio e oscarizado, e Adèle Haenel é a Heloise de Retrato de uma Rapariga em Chamas. Isso legitima o filme e dá-lhe arcaboiço para, mais uma vez, Dupieux sobreviver ao gimmick e montar um pequeno filme – (apenas 1 hora e um quarto – que é tão alucinado, quanto interessante. Pelo menos interessante qb para valer o McBacon.

Título: Le Daim
Realizador: Quentin Dupieux
Ano: 2019

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