| CRÍTICAS | Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo

A proposta não podia ter sido mais tentadora e apelativa: Doutor Estranho no Multiverso da Loucura. Não só o título evocava descaradamente H.P. Lovecraft, como um filme do Doutor Estranho sobre o multiverso feito por Sam Raimi fazia crescer água na boca até ao detrator mais rígido dos filmes da Marvel (olá Martin Scorsese). E, no entanto, o filme acabou por se revelar bem mais conservador do que esperávamos e, mesmo sem ser mau, não cumpria nada do que prometera. Ainda havia lá pelo meio um rápido assomo dum universo paralelo em que tudo eram pinturas, mas isso era só eye candy fugidio para entreter os mais atentos.

Eis então que surge Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo para cumprir tudo o que fora prometido por Doutor Estranho no Multiverso da Loucura. Esqueçam a Marvel, é a A24 o selo que vale a pena seguir hoje em dia. E para quem ainda não estava convencido, eis a enésima prova. Desde que a Marvel admitiu que existam universos paralelos, abrindo a porta ao multiverso, que as possibilidades passaram a ser quase infinitas. E é por o céu ser o limite que Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (especialmente quando assinado por Sam Raimi) acaba por saber a pouco. É certo que já tinha havido Homem-Aranha: No Universo Aranha, mas Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo fa-lo pela primeira vez em imagem real.

Em Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo existe um universo alternativo em que as pessoas têm salsichas em vez de dedos e, por isso, tudo o que nós fazemos com as mãos eles fazem com os pés, mas com uma execução pobre (como tocar piano, por exemplo). Existe outro em que um guaxinim exímio na arte da culinária esconde-se debaixo do chapéu de um cozinheiro sem jeito nenhum para os alimentos e, trabalhando em equipa, tornam-se os reis da cozinha (donde é que conheço isso?) – racacoonie, uma das coisas mais engraçadas que o cinema pariu esta década. E há ainda outro em que não foram reunidas as condições para o desenvolvimento de vida na Terra e, por isso, todas as personagens são pedras. E durante largos minutos vemos um diálogo incrível entre dois calhaus, com panorâmicas, campo-contra-campo e pans em que não se passa absoluta e literalmente nada. E, mesmo assim, há mais cinema nessa sequência do que na maioria das produções da Marvel (Scorsese ficaria orgulhoso desta frase).

E, no entanto, Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo começa da forma mais convencional possível. Michelle Yeoh (provando ser uma das actrizes mais versáteis da sua geração, algo que os mais atentos já tinham percebido – tanto faz comédia, como artes marciais, como é Bond girl ou dá a voz a desenhos-animados) está assoberbada com a vida: gere a lavandaria, que é o negócio de família, e tudo o que lhe está associado, incluindo a contabilidade, prepara-se para uma auditoria das Finanças (com uma Jamie Lee Curtis imparavel), choca de frente com a filha adolescente (Stephanie Hsu), tenta lidar com o marido (Ke Huy Quan, o miúdo do Indiana Jones e o Templo Perdido que, surpresa!, está agora homem feito e que regressa ao cinema 20 anos depois) e um casamento titubeante e ainda tem de contar ao pai conservador (James Hong, vénia encarpada com saída à rectaguarda) que a sua filha gosta de meninas e tem uma namorada.

No fundo, é isto a premissa de Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo, um filme sobre as relações humanas, sobre as dinâmicas familiares, o gap entre gerações e até a forte dicotomia entre a tradição e a modernidade numa família sino-americana. Mas, por exemplo, enquanto alguns filmes encontraram na troca de corpos a forma para falar sobre a difícil relação entre mães e filhas (Jamie Lee Curtis também esteve envolvida nisso, não é Um Dia de Loucos?), os realizadores Daniel Kwan e Daniel Scheinert optaram antes pelos universos alternativos. Por isso, quando tudo está prestes a descambar na vida de Michelle Yeoh, eles decidem complicar ainda mais as coisas. Aparece um Ke Huy Quan de um universo alternativo para lhe explicar que é possível saltar entre realidades no multiverso e que ela é a única capaz de parar a sua filha de se tornar num agente do caos destruidor nesses mundos paralelos. Já não bastava Michelle Yeoh ter que ser a super-heroína da sua vida, agora tem que ser também a super-heroína do universo.

Como o próprio título indica, Tudo em Todo o Lado ao Mesmo é isso mesmo, tudo ao mesmo tempo. E isso inclui todos os géneros cinematográficos. Ou seja, no seu núcleo, é um filme sobre relações familiares, mas é também um drama que pilha descaradamente Wong Kar Wai, a animação para toda a família de Ratatui, o wi-fu de O Tigre e o Dragão, a acção de Matrix e mais uma série de coisas que nem conseguimos enumerar sem evitar estar aqui a fazer name dropping. Daniel Kwan e Daniel Scheinert provam assim serem cinéfilos omnívoros que consomem tudo e mais alguma coisa, ruminando muito bem vários estilos de filmes e demais variações, para depois cuspirem-nos na cara algo de completamente novo. É como se o estilo cartunesco de Scott Pilgrim Contra o Mundo se cruzasse com o universo dramático e romanesco de 2046, com a ficção-científica de 2001: Odisseia no Espaço e com os desenhos-animados da Disney. Que outro Le Big Mac faz isso? Não o Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, de certeza.

Título: Everything Everywhere All At Once
Realizador: Dan Kwan & Daniel Scheinert
Ano: 2022

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