| CRÍTICAS | Raw

O sexo e a sexualidade sempre foi um dos temas preferidos para ser trabalhado nas entrelinhas do filme de terror. Afinal de contas, este é um tópico que dá pano para mangas. Pode ser declinado na questões da sexualidade adolescente dos jovens sexualmente activos que são sempre quem morre nos slashers, nas questões das DST de Vai Seguir-Te ou até nas questões de género de um Festival Rocky de Terror. O sexo dá para tudo. E Raw é apenas mais um exemplo de como esse exercício tem as costas largas.

Mas se o despertar da sexualidade é um dos temas de Raw, ele não é o único. Há aqui também uma reflexão sobre feminismo e a relação entre irmãs. Tudo isso a partir de uma metáfora que tem a ver com a dicotomia vegetarianismo/carnivorismo. E aqui o carnivorismo é mesmo literal, levado tão à letra que se torna mesmo canibalismo. É que, em última instância, Raw é um filme sobre canibais, uma variação moderna (e underground) dos cannibal movies que se tornaram numa das bandeiras dos exploitation dos anos 70.

Raw foi o filme de estreia da realizadora francesa, Julia Ducournou, que cristalizaria esses temas em Titane, o filmaço que venceu a Palma d’Ouro em 2021 (e eleito melhor filme desse ano aqui no estaminé). É que, tal como esse, Ducournou utiliza os mais inesperados géneros para falar destes temas: o filme de terror, tanto na sua variação cannibal movie e body horror, mas também a ficção-científica. E até o teen movie, uma vez que todos os jovens do filme vivem sem a supervisão de figuras adultas. A excepção são os pais das protagonistas, mas que estão mais ausentes do que presentes.

Justine (Garance Marillier) é então a personagem principal desta história. Ela é uma jovem numa família de vegetarianos ferrenhos, que acaba de entrar para a universidade de Veterinária, onde já estuda a irmã mais velha, Aleia (Ella Rumpf). Quando chega no primeiro dia, trazida pelos pais, Justine vê-se logo sozinha, uma vez que a mana não aparece para a receber. É logo um sinal do abandono a que todos os jovens do filme vão estar votados, porque apesar de estarem na universidade quase nunca há professores ou auxiliares em lado nenhuma. Por isso, há festas selvagens todas as noites nos locais mais inesperados da faculdade (na morgue, inclusive) e ninguém por perto para se aborrecer.

É a semana das praxes e as sessões de humilhação e javardice (que incluem comer fígado cru de coelho) acabam sempre em festanças que parecem orgias (ou filmes do Gaspar Noé). Contudo, depois de ser pressionada para comer o fígado de coelho, Justine começa a mudar. Primeiro fica com uma alergia na pele medonha (Cronenberg esfregou logo as mãos de contente) e, depois, começa a desenvolver um apetite sexual voraz. Sim, apetite sexual é o termo certo. Porque entre o despertar sexual e o canibalismo está uma fronteira muito ténue.

Isso vai levar a que a relação com a irmã, uma veterana popular na universidade, se complique, até porque fica sempre em aberto o porquê daquele estranho apetite. Será a família de Justine canibais escondidos e daí o vegetarianismo? No final, há menção ao trauma sexual, mas mais uma vez são apenas hipóteses lançadas sobre uma série de reflexões e metáforas, que nos são apresentadas em imagens fortes, tanto visual como simbolicamente. Julia Ducournau gosta de transtornar e, por isso, não se coíbe de mostrar mais do que devia, se bem que o seu gore nunca chega a ser gratuito. Ou, pelo menos, totalmente. Por isso, tal como Titane, é um daqueles filmes que, goste-se ou não, não se esquece. O mais difícil é conseguir mesmo terminar o McRoyal Deluxe depois de ver certas cenas de Raw (que, dizem as crónicas, levou a que muita gente abandonasse a sala de projecção para ir vomitar e que certos cinemas entregassem à entrada saquinhos de papel, não fosse o diabo tece-las).

Título: Raw
Realizador: Julia Ducournau
Ano: 2016

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