| CRÍTICAS | Daisy Diamond

Costuma-se dizer que é da Áustria que vêm os filmes mais perturbadores da actualidade (cortesia de gente como Michael Haneke ou Ulrich Seidl), mas isso não é correcto. É na Dinamarca que se fazem alguns dos filmes mais fucked up do momento, só que isso nos passa despercebido porque: a) a Dinamarca continua a exportar essencialmente os seus realizadores do Dogma (olá Von Trier, olá Vinterberg) e, apesar de esse ser um cinema bem perturbador, acabamos por o ignorar porque b) existe o mito urbano que tudo o que vem da Escandinávia é belo, perfeito e feliz. Portanto, Lars Von Trier é só a excepção que confirma a regra, um tontinho deprimido que devia ter nascido no sul da Europa. Certo? Errado.

Ainda há pouco tempo andava aí Holiday, nas nossas plataforma de streaming, para nos mostrar o contrário. Ou então basta ir procurar Daisy Diamond, o filme que popularizou Noomi Rapace, em 2007, e que é uma espécie de percursor de Ninfomaníaca. À superfície, Daisy Diamond é uma história sobre uma mãe solteira (a própria Noomi Rapace) e aspirante a actriz, que procura desesperadamente uma oportunidade que lhe permita vencer na vida. No entanto, à medida que vai sendo recusada nas constantes audições a que vai, o desespero vai aumentando, exponencialmente ao volume do choro do bebé. A agonia, a aflição e a exasperação são tantas que somos mesmo obrigados a baixar o som do filme. E como Noomi Rapace não tem a opção de cortar o volume, acaba por afogar o bebé na banheira. E esse é o primeiro de vários momentos que temos que desviar o olhar do ecrã.

Daisy Diamond é um filme provocador, que filma com um realismo directo – de frente, em grandes planos, sem filtros – cenas de sexo, violação ou drogas duras. Tem ainda uma cena em que Noomi Rapace corta o cabelo (que rima com A Paixão de Joan D’Arc, que é referenciado directamente às tantas – e fica feita a ponte com Dreyer, o outro dinamarquês que toda a gente conhece e fundador do cinema moderno da Dinamarca) e outra em que apara os pêlos públicos. Daisy Diamond é, portanto, um filme-choque, mas apesar do seu grafismo, é um filme de metáforas.

Primeiro que tudo, Daisy Diamond é um comentário ao mundo do cinema e da representação, de como a vida contamina os papeis dos actores e vice-versa, mas também de como esta é uma indústria falsa, corrupta e aproveitadora. Os realizadores e os produtores, que chantageiam Noomi Rapace nas audições, trocam favores por sexo e aproveitam-se da vulnerabilidade de quem está à sua frente, aproveitando-se das suas posições de poder. Quem me dera ser actriz e poder aproveitar a dor para o meu trabalho, diz às tantas uma directora de casting e conseguimos facilmente imaginar uma pessoa daquelas a dizer coisas dessas por convicção.

E depois Daisy Diamond é também uma reflexão sobre a maternidade, meio distorcida, é certo, mas que não deixa de colocar o dedo na ferida, lembrando que nem tudo é um mar de rosas de algodão doce e arco-íris, como costuma ser pintado pela sociedade. Daisy Diamond está para a maternidade assim como A Estrada está para a paternidade. É duro, mas se calhar é preciso de ser visto.

Noomi Rapace tornou-se actriz depois deste filme e é fácil perceber porquê. A dedicação e a forma como entrega o corpo às balas é o segredo do sucesso de Daisy Diamond, uma obra fácil de arruinar carreiras. É que basta um passo em falso para resvalar para o sensacionalismo barato, a metáfora barata e gasta ou a provocação rasteira. Com Rapace ao leme, o filme sai incólume e bem-sucedido da sua demanda arriscada e arrecada para comer à refeição um McBacon.

Título: Daisy Diamond
Realizador: Simon Staho
Ano: 2007

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