| CRÍTICAS | Histórias Extraordinárias

Filmes corais, feitos a várias mãos, têm sempre um sabor estranho. Por um lado, é inevitável não nos sentirmos entusiasmados com a mistura de tanto talento, entre diferentes actores e realizadores; mas, por outro lado, sabemos que raramente dão certo, porque é difícil fazerem sentido. São normalmente uma amálgama de estilos e de altos e baixos. Histórias Extraordinárias é um excelente exemplo disso.

Estas experiências colectivas eram mais comuns nos anos 60. Os produtores maximizavam o seu investimento ao chegar a mais público, que por sua vez tinha acesso em simultâneo a mais nomes conhecidos, numa época em que a produção cinematográfica era mais modesta do que agora. E os realizadores encontravam uma forma de experimentarem outras coisas, num formato diferente, mais comprimido do que o habitual. Aliás, no caso de Histórias Extraordinárias, o filme de que falamos aqui, serviu por exemplo para que um dos envolvidos, Louis Malle, arranjasse dinheiro para financiar a sua próxima longa-metragem (olá Sopro no Coração).

Histórias Extraordinárias é então um conjunto de três histórias, assinadas por Malle, Roger Vadim e Federico Fellini, baseadas mais ou menos livremente em contos de Edgar Allen Poe. Estamos então no terreno do fantástico, mas com abordagens em distintas. Comecemos então por Vadim, que assina o primeiro segmento do filme. Metzengerstein é quase uma extensão de Barbarella, que o realizador acabara de fazer. É certo que é uma história medieval, de contornos góticos, mas a sua esposa Jane Fonda utiliza o mesmo guarda-roupa, sexy e algo camp, que faz com que a curta tanto lembre as adaptações de Poe por Roger Corman como os swinging sixties britânicos.

Jane Fonda é então a condessa Metzengerstein, uma jovem tão rica quanto caprichosa, que passa os dias em orgias e outras actividades hedonistas. O único que não lhe obedece é o seu primo (e irmão na vida real, Peter Fonda, na única oportunidade em que actuaram juntos) e é esse misterioso homem que ela deseja. Por isso, quando este morre tragicamente por culpa dela, Fonda descobre uma nova vida junto de um misterioso cavalo negro que surge lá nos aposentos. A coisa ganha toda uma ressonância ainda mais sexual, num filme muito estilizado e mais reflexivo do que explicativo, salvo o narrador que vai ajudando a tapar os buracos da narrativa.

O segundo segmento, William Wilson, é uma história de doppelgangers, com um Alain Delon em topo de forma, que poderia muito bem ter saído directamente do Dorian Gray de Oscar Wilde. Delon é assim um militar cruel e egocêntrico, que ao longo da vida se vai cruzando com um outro tipo igualzinho a si e que mais não é do que a manifestação do seu lado benévolo. A gota de água que faz o copo transbordar é quando este último interrompe o primeiro de dissecar viva uma nua e morena Brigitte Bardot, atada a uma mesa de autópsias. Eu sei que não resisto a uma história de duplos, mas William Wilson, é o melhor dos três segmentos, apesar de ser curiosamente o menos recordado.

Finalmente, aquela que é a parte mais conhecia de Histórias Extraordinárias, tendo sido inclusive exibida independentemente em versão restaurada durante as recentes celebrações do centenário de Fellini. Tobby Dammit é muitas vezes descrito como um 8 1/2 no inferno, ou seja, um filme sobre o esgotamento artístico de (neste caso) um actor. Este é Terence Stamp, em versão uber-decadente, que viaja até Itália para fazer o primeiro western cristão, a troco de um Ferrari (farpa a Clint Eastwood).

De todas as Histórias Extraordinárias, a de Fellini é aquela que mais liberdade criativa utiliza ao abordar Edgar Allen Poe. Fellini utiliza todas as suas armas surrealistas. A sequência inicial no aeroporto romano é quase um delírio bunuelano (mas que também lembra a cena da revelação das ruínas subterrâneas no seu Roma), a cena na entrega de prémios dos Oscares italianos é uma sátira ácida a toda a indústria (outro nível de La Dolce Vitta) e, no final, quando Terence Stamp se vê encurralado naquela aldeia italiana e anda às voltas no Ferrari sem encontrar a saída, parece quase que estamos a ver o percursor de Estrada Perdida, de David Lynch. Tobby Dammit é um exercício de estilo com todas as imagens de marca do corpo de obra de Federico Fellini e uma óptima forma de encerrar este McChicken colectivo, feito a seis mãos.

Título: Histoires Extraordinaires
Realizador: Roger Vadim, Louis Malle e Federico Fellini
Ano: 1968

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