| CRÍTICAS | Os Demónios do meu Avô

A produção de animação em Portugal pode ser modesta, mas são vários os casos de destaque, que costumam fazer furor no circuito de festivais. O caso mais flagrante será o de História Trágica com Final Feliz, de Regina Pessoa, um dos filmes portugueses mais premiado de sempre, e mais recentemente o trabalho de David Doutel e Vasco Sá, que criaram um dos corpos de obra mais particular da animação da actualidade. E, no entanto, nunca até hoje tinha havido uma longa de animação em Portugal.

Os Demónios do Meu Avô é então o filme que vem colmatar essa lacuna E mostra que não é por falta de capacidade técnica que não aconteceu antes. É que a primeira parte do filme não fica a dever nada ao que se faz lá fora, na primeira divisão mundial dos desenhos-animados. E dizemos a primeira parte do filme porque, na segunda, ele transforma-se completamente. Ao mudar-se da cidade para uma aldeia transmontana do Portugal real, o digital dá lugar ao stop motion, com figuras de barros e diagramas influenciados pelas esculturas de Rosa Ramalho.

Ou seja, enquanto está ambientado na grande cidade, Os Demónios do Meu Avô é todo ele pós-modernismo, empreendedores, start-ups, unicórnios e todas essas palhaçadas capitalistas disfarçadas de bem-estar. Rosa (voz de Victoria Guerra) mata-se a trabalhar para ser bem sucedida nesse mundo selvagem de aparências e, quando está prestes a ter um burnout, recebe a notícia de que o avô, que tem negligenciado desde que se mudou da aldeia, acabou de falecer. É um assalto de nostalgia, com que todos acabamos por nos identificar mesmo que não queiramos, desde que tenhamos um mínimo de culpa recalcada cá dentro. O realizador Nuno Beato mostra que andou a estudar muito bem as fórmulas da Pixar.

Rosa decide então viajar até à aldeia onde cresceu e passar um tempo na casa do avô, talvez em busca das respostas que precisa, se bem que não sabe muito bem quais são sequer as perguntas. É o regresso ao campo, na eterna dicotomia entre urbano vs rural, numa óptica de desaceleração (nem sequer há sinal ou wi-fi no meio daquelas casas de xisto) e que mergulha de cabeça no folk horror, que é também a matéria criadora do Coisa Ruim, esse filme fundador do terror nacional. E Os Demónios do Meu Avô cria o imaginário perfeito, casando na perfeição as esculturas de Rosa Ramalho com a música dos Gaiteiros de Lisboa.

Rosa vai então descobrir que a imagem que tinha do avô, carinhoso e atencioso, nada tem a ver com a aquele cultivou na aldeia durante os anos em que ela se mudou. O avô era um homem rancoroso, vingativo e cheio de ódio, que não deixou uma marca muito bonita na aldeia e que, por isso, acabou por cultivar o desdém dos vizinhos. Arrependeu-se no final e deixou pistas à neta, que se ela resolver poderá fazer as pazes com a aldeia e com o próprio passado, numa óptica perfeita de redenção.

Muitas vezes, essas pistas são apenas truques de um episódio menor de As Aventuras do Jovem Indiana Jones, mas isso não interessa para nada porque não é o importante do filme. Esses pretextos são apenas a estrutura que constrói o arco narrativo que culminará em catarse colectiva, a de Rosa, a do avô e até a da aldeia. Os Demónios do Meu Avô é um filme inteiro, que sabe tirar todo o partido da sua animação analógica e que experimenta com grande segurança uma vasta paleta de sentimentos, que vai de um extremo do espectro ao outro – da comédia ao drama – com igual eficiência. A primeira longa-metragem de desenhos-animados portuguesa é também um McRoyal Deluxe fundador, que servirá seguramente de termo de comparação durante muitos anos.

Título: Os Demónios do Meu Avô
Realizador: Nuno Beato
Ano: 2022

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