A ficção-científica sempre foi, tradicionalmente, uma forma de reflectir sobre os males da sociedade. As várias ameaças dos alienígenas do planeta vermelho durante a Guerra Fria ou as inúmeras distopias futurísticas a rimar com certos estados autoritários são alguns clássicos deste sub-género muito específico. Por isso, um filme como Lapsis, que constrói um futuro mais ou menos alternativo, mas não muito distante do nosso, para bater à bruta no capitalismo, pode-se inserir nesta tradição.
O futuro de Lapsis não é muito distinto do nosso. A única diferença é que surgiu no mercado uma espécie de novo computador, que não só vai revolucionar o mundo do hardware e do software, como também o da internet. Nunca percebemos muito bem como funciona o Quantum, mas sabemos que é mais rápido, mais eficiente e mais tudo. E, para que funcione de forma integrada, é preciso que milhares de trabalhadores espalhem cablagem interminável pelo meio do mato, ligando entre si uns cubos gigantes que são os servidores. De certa forma, o Quantum antecipa a internet das coisas, mas com cabos.
Ray (Dean Imperial) é o clássico trabalhador de classe média, sempre mais perto do limiar de pobreza do que de enriquecer. Além de ter ficado sem o emprego numa empresa de recolha e entrega de bagagens (ai a precariedade do trabalho), Ray precisa ainda de dinheiro urgentemente para pagar um novo tratamento para o irmão caçula, Jamie (Babe Howard), que sofre de uma doença chamada omnia e que o deixam sempre cansado, muito cansado. A doença dos tempos modernos e do século XXI, portanto. Por isso, decide ir tentar um desses trabalhos a espalhar cabo, que muitos tecem loas aos céus pelas magníficas somas de dinheiro que pagam.
Toda a linguagem em volta da tecnologia Quantum e da CABLR, a empresa que espalha a cablagem, faz parte dessa novilíngua que abrilhanta os empreendedores deste mundo. Espalhar cabo para a CABLR é uma “experiência” e não um trabalho, que é boa para o “colaborador” porque o mete a dormir no campo e a respirar ar puro em vez de estar fechado num escritório. Além disso, a empresa mete um robôs que parecem uns cães atrás deles que, se os ultrapassarem, perdem imediatamente o pagamento daquela rota. Tudo isso para “os fazer desfiar o status quo”. A coisa roça tanto a escravidão das grandes multinacionais (o expansionismo do Google e a exploração massiva da Amazon, por exemplo), quanto a inconsequência kafkiana do capitalismo consumista: é preciso gerar e criar produto para ser consumido, mesmo que não necessitemos dele, sob o risco do sistema colapsar. E apesar dos meios de produção estarem nas mãos dos trabalhadores, os seus direitos são praticamente nulos.
Marx iria gostar de Lapsis. Tal como Desculpe Incomodar, Lapsis questiona todo o sistema capitalista em que vivemos por entre o absurdo e a metáfora mais desconstruída, recorrendo aos signos da ficção-científica. Mas é aquela sci-fi feita de ideias e não de efeitos-especiais, que está mais perto de objectos como Primer do que de blockbusters espalhafatosos. É verdade que não cumpre exactamente o que promete inicialmente, mas existem poucos McBacons tão inteligentes e bem esgalhados como este, que nos atiram para um sistema de engrenagens que mói sem piedade, irritando-nos e cansando-nos em nome do trabalho e da servidão humana.
Título: Lapsis
Realizador: Noah Hutton
Ano: 2020