| CRÍTICAS | Tár

Todd Field demorou 16 anos a voltar a dar sinais de vida e anos dissesse que esteve esse tempo todo a preparar o argumento de Tár, eu acreditaria. É que a composição da personagem principal, que dá título ao filme e que é encarnada por Cate Blanchett, é de um pormenor tal que não há como acreditar no filme. Além disso, tem a participação de tanta gente real do mundo da música clássica a fazerem deles próprios (para não falar do name dropping abundante e recorrente), que às tantas até parece que estamos a ver um biopic real da maestrina da Orquestra de Berlim.

Cate Blanchett é então Lydia Tár, apelido que é a transliteração anglo-saxónicas do húngaro Tarr (como confirmamos de forma casual, perto do fim, quando ela regressa a casa), e que é uma homenagem discreta a Béla Tarr e ao seu cinema exaustivo. É que Tár está cheio de rasastes destas, que quem sabe sabe e, quem não sabe, desfruta na mesma. Por exemplo, o facto de Blanchett estar a preparar a gravação da Quinta de Mahler, obra sublime composta quando o austríaco estava no auge da sua paixão pela esposa, tem significado simbólico profundo na história. Ou o facto de Krista (Sylvia Flote), a sua antiga aprendiz, lhe oferecer o livre de Vita Sakville-West, Challenge, todo ele sobre amores e traições, tem outro nível de leitura.

Cate Blanchett é assim uma mulher brilhante, com uma carreira recheada de sucessos (só lhe falta mesmo gravar a Quinta de Mahler) e com uma vida familiar plena, ao lado de Nina Hoss, a primeira-violino da sua orquestra. E para quem não está por dentro do funcionamento da música clássica, vale a pena realçar que esse é o mais importante de todos os música. E isto também não é inocente na relação. E como Todd Field sabe que a maioria do público não está ciente disso, explica-nos de forma subtil a situação: em tempos, quando a figura do maestro ainda não existia, era o primeiro violão que liderava a orquestra.

Tudo isto para dizer que Tár revela-nos aquilo que o cinema está cansado de nos mostrar: que é por trás das fachadas aparentemente perfeitas e maravilhosas que se escondem os maiores segredos. David Lynch sorriu. É que, por trás da Lydia Tár maravilhosa e perfeita, esconde-se uma Lydia Tár vingativa e abusiva. E as denúncias começam a fazer esses podres virem ao de cima.

Há os que vêm no filme uma crítica mordaz aos tempos de… cancel culture, essa expressão odiável que serve para tudo e que, sempre que é usada, morre uma foca. Que chatice pá, agora já não se pode abusar de ninguém. Dantes é que era. Por que as pessoas não se limitam a engolir as ofensas e a reprimir os traumas como eu sempre fiz? E hoje estou aqui, completamente normal. Mas deixa-me lá despachar isto que tenho de ir à terapia e depois de tomar os comprimidos já não consigo escrever mais nada de jeito. Portanto, Tár podia ser sobre os “cancelamentos”, mas é muito mais do que isso. É ume tudo de carácter sobre uma personagem complexa, contraditória e, acima de tudo, humana.

Cate Blanchett é incrível e maravilhosa, fazendo jus a todas as loas que já lhe foram tecidas e até aprendeu a dirigir uma orquestra para as cenas em palco, que Todd Field filma com precisão. Mas esse nível de detalhe é também o pior do filme, que por vezes se torna demasiado denso e pesado. Nada que seja problemático, Tár é uma bela obra, mesmo que o final em aberto possa não ser totalmente satisfatório. E é Maos um McBacon para o rol de grandes heroínas clássicas no corpo de obra do realizador. Depois de Kate Winslet E Sissy Spacek, eis Cate Blanchett.

Título: Tár
Realizador: Todd Field
Ano: 2022

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