Sleepers – Sentimento de Revolta é um filme sobre várias coisas e com muitos níveis de leitura – até porque é um épico com quase três horas -, mas é, acima de tudo, uma história sobre quatro jovens que são colocados ao abrigo de uma instituição que abusa deles repetidamente, denunciando uma hierarquia de abusos, violência e intimidação sistémicos. Ou seja, Sleepers – Sentimento de Revolta podia ser um filme sobre a igreja católica, mas é antes sobre o sistema correccional norte-americano. Talvez alguém possa mostrar o filme ao episcopado nacional, que insistem em recusar assumir a responsabilidade e olhar de frente para os problemas dos abusos no seio da sua instituição, como temos visto recentemente.
Sleepers – Sentimento de Revolta começa nos anos 60 e passa-se em Hell’s Kitchen, esse bairro do West Side de Manhattan com tão boa tradição no cinema de Hollywood e com fortes comunidades italianas ou porto-riquenhas. O bairro é, obviamente, um grande fresco da América do pós-guerra, que se projecta em quatro jovens que são os melhores amigos: Joe Perrino, Brad Renfro, Geoffrey Wigdor e Jonathan Tucker. Podiam ser o mesmo tipo de grupo de jovens que Stephen King usa amiúde para falar dos laços da amizade, assim como podia ser também o n-ésimo filme de Martin Scorsese sobre a comunidade italo-americana nos Estados Unidos. Barry Levinson faz precisamente uma fusão a frio entre Os Cavaleiros do Asfalto e o Conta Comigo.
Até que os jovens, numa partida irresponsável de adolescentes, acabam por matar um homem e são condenados a ano e meio numa unidade de correcção institucional. Por outras palavras, numa prisão para menores de idade, onde os problemas são exactamente os mesmos do que nas prisões normais: uma relação de poder abusivo não só entre os presos, mas também entre os guardas e os jovens. E, com Kevin Bacon a liderar as hostes, há toda uma série de violações sexuais e espancamentos que vão deixar marcas para sempre naqueles quatro amigos. Sleepers – Sentimento de Revolta quer ser um filme-denúncia sobre este sistema, de onde o Estado norte-americano já parece se ter demitido há muito tempo, até porque é baseado numa história real. Será que é? Ao que parece, não existe nenhuma prova de que a história escrita por Lorenzo Carcaterra (que sempre se negou a prestar mais esclarecimentos sobre o assunto) seja verídica. Estaremos perante outro Força Destruidora?
A segunda parte do filme arranca com um salto de 20 anos, já com os jovens adultos. Eles são agora interpretados por Brad Pitt, Jason Patric, Billy Crudup e Ron Eldard. E, todos eles, apesar do pacto de silêncio, continuam mercados pelo trauma daquele período passado na instituição. Por isso, quando Crudrup e Eldard encontram casualmente Kevin Bacon a jantar num restaurante, não resistem a despejar os revólveres nele. A vingança é um prato que se serve frio. Mas Brad Pitt e Jason Patric ainda têm planos para mais. Por isso, a segunda metade de SSleepers – Sentimento de Revolta é a de filme de tribunal.
Com a ajuda de um advogado bêbado (Dustin Hoffman), o rei do crime de Hell’s Kitchen (Vittorio Gassman) e o padre da comunidade (Roberts De Niro), Brad Pitt vai engendrar um esquema que vai permitir desmascarar os guardas, inocentar os amigos e conseguir que a vingança seja completa. Para isso, vão ter que contar com o perjúrio. Será a mentira tolerável numa situação destas? Podemos dizer que é justiça poética? O falecido crítico de cinema Roger Ebert acusou Sleepers – Sentimento de Revolta, num pertinente texto, de ser homofóbico. Se aqueles jovens não tivessem sido violados sexualmente não estaríamos dispostos a perdoa-los por terem morto um homem por vingança a sangue frio. A discussão é válida, até porque rapidamente Barry Levinson escolhe um lado. O filme tem bem definidos os papeis de vilões, na sua dicotomia entre o bem e o mal.
Barry Levinson andou sempre ligeiramente um passo à frente de ser um simples tarefeiro, sendo um dos melhores representantes daquilo que agora tem sido apelidado do “cinema do meio”. Em Sleepers – Sentimento de Revolta torna-se tudo mais fácil com um elenco coral destes: De Niro, Hoffman e até Brad Pitt ou Jason Patric. O filme refere O Conde de Monte Cristo amiúde e, de facto, não há melhor descrição. Como na história de Alexandre Dumas, Sleepers – Sentimento de Revolta é sobre um herói colectivo a quem roubam a liberdade e o amor, regressando enquanto vingador impiedoso, para além de toda a lei humana ou divina. Um sólido McBacon, que ainda tinha espaço para mais molhos e acompanhamentos.
Título: Sleepers
Realizador: Barry Levinson
Ano: 1996