Laura Poitras tem-se destacado como uma documentarista de causas, cujos trabalhos mais conhecidos (e que lhe valeram inclusive um Oscar) são Citizenfour, sobre Edward Snowden, e Risk, sobre Julian Assange. Por isso, o seu encontro com Nan Goldin parecia estar escrito nas estrelas. É que, além de continuar a ser uma das fotógrafas mais importantes da história da fotografia, Nan Goldin tem mantido, nos últimos anos, uma forte postura activista na luta contra a família Sackler, exigindo a sua responsabilização pela crise dos opióides, em que um medicamento como a Oxicodona já provocou mais de 400 mil mortes em todo o mundo.
Poitras e Goldin juntaram-se então para um filme que tem várias camadas. Por um lado, é um documentário sobre a vida e a obra de Nan Goldin e como a primeira influenciou a segunda. Afinal de contas, a arte da fotógrafa sempre reflectiu a sua própria vida. Por exemplo, quem não conhece as suas fotos sexuais, em que a própria é modelo e fotógrafa? Se não sabe do que estou a falar, basta dar uma busca rápida no Google. Mas não só. Nan Goldin não foi apenas uma fotógrafa dos marginais nova-iorquinos, já que ela própria fazia parte daquele mundo, onde se movimentavam toda uma espécie de misfits, incluindo John Waters ou Cookie Mueller, por exemplo.
Contudo, não se pense que é um documentário convencional, de cabeças falantes. Há a voz de Nan Goldin, que é a narradora omnipresente do seu próprio filme (afinal, se ela sempre foi parte integrante da sua arte, como é que era possível fazer um documentário sobre si deixando-a de fora?), mas quase sempre em off. E há os seus famosos slideshows, que, no fundo, aproximam a sua arte do mecanismo fílmico. Com isso, Goldin – e o próprio documentário – não só contam os factos, como reflectem sobre a sua vida, a sua educação e os traumas da juventude (especialmente o suicídio da irmã, episódio marcante no seu crescimento e formação enquanto adulta, a quem é dedicado Toda a Beleza e a Carnificina – assim como já fora o seu primeiro e mais importante livro, The Ballad of Sexual Dependency) e como contribuíram para que Nan Goldin fosse a pessoa que é hoje.
E, depois, há a parte activista de Toda a Beleza e a Carnificina, que decorre em paralelo com a retrospectiva da vida e obra. Depois de ter caído nas malhas da Oxicodona, um medicamento altamente viciante que a Big Pharma espalhou pelo mundo escondendo propositadamente os seus malefícios e que é responsável por 200 mortes diárias actualmente, Nan Goldin revoltou-se. Ainda para mais, porque a família Sackler, dona da empresa farmacêutica responsável por esse flagelo, é uma das famílias filantropas mais importantes do mundo. Aliás, não há qualquer museu nos Estados Unidos digno desse nome que não tenha uma ala baptizada com o apelido Slacker, tal é a magnitude das suas doações.
Por isso, Goldin criou a PAIN (Prescription Addiction Intervention Now), uma associação activista que, primeiro, quer denunciar este escândalo; e, segundo, quer retirar o nome da família Sackler dos museus, responsabilizando-os perante as vítimas. Para isso, recorrem a uma intervenção directa, meio performance meio desobediência civil, que lembra muito a intervenção da Act Up (se não viram 120 Batimentos por Minuto, este é um bom pretexto) na luta pela sensibilização para com a Sida (luta que a própria artista também esteve, de alguma forma, próxima). É a faceta agit-prop de Toda a Beleza e a Carnificina e, sem querer entrar em spoilers, faz quase lembrar um documentário Netflix, tal é os resultados que consegue alcançar no final.
Toda a Beleza e a Carnificina é um documentário que se liberta das convenções formais sem ser radical, transformando-se em algo mais, algures entre o belo e o trágico. É, mais ou menos, como as fotografias da própria Nan Goldin (e os seus slideshows), que representam uma realidade que, por fugir da normatividade, acabam por revelar novas características, emoções e realidades a que não estamos habituados (ou que, pelo menos, não associamos automaticamente). É um belo documentário e um excelente trabalho sobre Nan Goldin, que não deixa também de ter a sua marca autoral. Pode não ter ganho o Oscar (bate Nevalny aos pontos, digo eu que não percebo nada disso), mas ao menos saca daqui um McBacon.
Título: All the Beauty and the Bloodshed
Realizador: Laura Poitras
Ano: 2022