| CRÍTICAS | Wendy e Lucy

Wendy (Michelle Williams) podia muito bem ser uma das muitas pessoas a que Nomadland – Sobreviver na América veio dar forma: trabalhadores mastigados e regurgitados pelo sistema capitalista, autêntica carne para canhão elevado à potência máxima da precariedade. Estas pessoas, que vivem num forçado estado de nomadismo – vivendo em carros porque não conseguem pagar uma casa, presos a trabalhos temporários e sazonais nas grandes multinacionais como a Amazon -, são as originais provisional figures de que Marco Martins falava no seu recente Great Yarmouth.

Conhecemos Wendy em trânsito, no seu carro com a companhia da cadela Lucy, com toda a sua vida metida na mala e quinhentos dólares no bolso, que têm que dar para chegar ao Alasca, onde espera encontrar um trabalho qualquer numa das várias fábricas de peixe que lhe permitam relançar a vida. Na verdade, nunca sabemos muito sobre a sua vida, já que Wendy e Lucy apenas captura um momento dessa viagem. E, no entanto, parece que ficamos a conhecer tanto sobre Wendy. É esse o poder de Wendy e Lucy, um pequeno filme artesanal, rodado quase em modo de guerrilha, sem música, com cenários reais e um par de actores (entre eles o grande Will Oldham, vénia com saída à retaguarda).

Wendy para o carro para passar a noite e este nunca mais pega. Depois, enquanto vai ao supermercado arranjar qualquer coisa para comer (reparem que não usei o verbo comprar), deixa a cadela Lucy amarrada lá fora. E, quando regressa, o animal já não está lá. Wendy e Lucy é um filme sobre a perda – ele próprio é um filme em perda, um filme com uma existência quase rarefeita – e a cadela é o símbolo dessa falência, que é tanto perda quanto solidão.

Em Wendy e Lucy acompanhamos Wendy na sua busca pela cadela, ao mesmo tempo que procura arranjar solução para o carro. Com apenas meia dúzia de tostões no bolso, Wendy e Lucy é uma luta pela sobrevivência. Enquanto que, à primeira vista, é um filme sobre uma mulher à procura do cão, lá no fundo (e não é preciso escavar muito…) é um filme angustiante, que nos faz sofrer. E, apesar de nem chegar à hora e meia de duração, deixa-nos de coração nas mãos várias vezes. Wendy e Lucy, o filme que confirmou Kelly Reichardt como grande realizadora do nosso tempo, é ainda o regresso do verdadeiro cinema norte-americano independente, longe de convenções formais e narrativas fixas, feito com mais atitude do que meios. E é o McBacon que faltou a Wendy para jantar e recuperar as forças que tanto necessitava.

Título: Wendy & Lucy
Realizador: Kelly Reichardt
Ano: 2008

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *