Depois do herói de acção comum, que, ao contrário do herói de acção musculoso e fascizante que marcou os anos 80, era apenas um tipo de boas intenções que estava no local errado à hora errada (e que, mesmo que não tenha sido o primeiro, foi cristalizado pelo John McClane, de Bruce Willis, no Assalto ao Arranha-Céus), eis que nos chega a superação do homem ordinário. Nos últimos anos tem-se desenvolvido uma nova tendência no filme biográfico, com uma série de biopics de heróis comuns (tal e qual esses heróis de acção dos anos 90), que acaba por rimar de certa forma com outra tendência forte de Hollywood, a do thriller auto-depreciativo.
Estamos a falar de biografias de tipos com quem nos é fácil de identificar e que, sem terem nenhum talento específico e especial, conseguiram vencer e sobressair na vida, especialmente graças ao seu trabalho duro e determinação de ferro. E sorte, claro, mas normalmente essa parte fica de fora do filme. No fundo, é um tema bem antigo no cinema norte-americano – o do underdog -, que não é mais do que um reflexo do sonho norte-americano, que recebe agora uma nova embalagem. E esse frenesim por histórias de homens banais que se excederam tem feito a que se façam biopics de tudo e mais alguma coisa. Só neste último par de meses vimos aparecer biografias sobre os criadores do Blackberry, o gajo responsável por contratar o Michael Jordan na Nike e, consequentemente, criar os Air Jordan, o tipo que jogava flippers nas horas e que foi responsável por terminar com o banimento de décadas dessas máquinas em vários estados norte-americanos e, agora, uma sobre o inventor dos… Cheetos picantes(!).
Dito assim parece ser algo para não levar a sério. Cheetos picantes, a sério? Isso dá para uma história? Depois vemos o filme e percebemos melhor. Richard Montañez (interpretado por Jesse Garcia) era um contínuo mexicano na fábrica da Pepsico, que apareceu com a ideia de uma nova estratégia que apelasse à comunidade latina a viver nos Estados Unidos. Há aqui a habitual história do underdog (Montañez vinha da rua e das gangues, não tinha educação formal…) e há a perspectiva de classe, com uma história de superação contada a partir de um ponto de vista não-branco, que abre a porta à representatividade. E, no entanto, continua a ser um filme sobre Cheetos picantes…
Eva Longoria, que tem aqui a sua estreia na longa-metragem enquanto realizadora, parece ter noção das limitações da sua história e, por isso, tenta uma abordagem descontraída e informal, com Montañez a quebrar a quarta barreira constantemente, de forma a criar empatia e identificação connosco. No entanto, Flamin’ Hot é tão derivativo e superficial que parecem aquelas tentativas do pessoal velho em parecer jovem, novo e cool, que em Portugal teve o seu auge nos anos 90, durante os anos de Cavaquistão, em que todas as campanhas de políticas de Juventude empregavam a palavra bué, para demonstrar como o Governo era bué fixe e bué jovem e bué nice. Ou então aquele meme do Steve Buscemi com um boné e um skate – how do you do, fellow kids?
Flamin’ Hot está então condenado aos domingos à tarde, com a etiqueta de filmes instigadores para toda a família, que ainda por cima se esforça em nos esfregar na cara aquela ideia da meritocracia e de que, se te esforçares muito, consegues vingar. Não há nada mais irritante do que o capitalismo continuar a vender-nos as suas tretas da. superação pessoal. E o filme ainda tem um twist: aparentemente, a história de Richard Montañez é treta e ele não criou coisa nenhuma. Eva Longoria e os produtores foram avisados e decidiram fazer o filme na mesma, falando assim duas vezes: nem Flamin’ Hot é um biopic, nem é um bom filme. Para algo sobre aperitivos picantes, Flamin’ Hot é muito insonso. Mais vale ficarem-se pelo Happy Meal.
Título: Flamin’ Hot
Realizador: Eva Longoria
Ano: 2023