| CRÍTICAS | A Festa de Babette

Karen Blixen é a grande voz da literatura dinamarquesa, se bem que teve o azar de ficar presa para sempre ao seu livro de memória, África Minha. Tudo devido à adaptação ao cinema que imortalizou Meryl Streep, os caracóis dourados de Robert Redford e toda uma geração de sonhadoras românticas. Enquanto isso, todo o resto da sua obra permanece mais ou menos desconhecida fora da Escandinávia. A Festa de Babette podia ser a excepção, até porque a adaptação ao grande ecrã foi também o primeiro filme dinamarquês a ganhar o Oscar de melhor obra estrangeira.

A Festa de Babette é uma espécie de fábula, ambientada numa pequena e remota aldeia do século XIX, extremamente religiosa e conservadora. As filhas do pastor são as personagens centrais desta comunidade e são elas que seguimos ao longo de várias décadas. E, apesar das oportunidades que cada uma delas teve para casar e deixar a aldeia, ambas decidem sempre permanecer junto do pai e ficar para tias. Mais tarde, quando são já velhas (e interpretadas por Bodil Kjer e Birgitte Federspiel), recebem a visita de uma misteriosa francesa, a Babette do título (Stéphane Audran, a de O Charme Discreto da Burguesia), fugida da guerra franco-prussiana, que por recomendação de um amigo em comum acaba por ficar a viver com as manas e a trabalhar para elas como criada.

Década e meia depois, já completamente integrada na comunidade, Babette ganha a lotaria. São 10 mil francos de prémio, que decide gastar num autêntico jantar francês, na noite de aniversário do falecido pastor, para todos os seus seguidores. O que, para uma comunidade altamente religiosa, acaba por ser um choque. Afinal de contas, ninguém está sequer habituado a ver tartarugas, codornizes, vinhaça da boa e outros pitéus e iguarias de luxo.

A Festa de Babette demora a arrancar, mas assim que esta começa a preparar o jantar, o filme começa a ganhar verdadeiramente forma. E, como é sabido, é à mesa que se desenrolam as melhores histórias. Aqui ninguém vai comer até ao limite máximo do prazer (olá A Grande Farra), mas a ideia da comida como via para a satisfação e para a realização pessoal e colectiva é a mesma. À medida que os pratos, cada vez mais requintados, se vão sucedendo (e o vinho vai sendo esvaziado dos copos), aquelas pessoas desconfiadas vão baixando a guarda e deixando-se levar.

A refeição, enquanto acto de liturgia quase religiosa, tem um grande poder e uma tradição longa no cinema, que vai de O Anjo Exterminador a O Segredo de um Cuscuz. Em A Festa de Babette estamos sempre à espera de um efeito revelador que nos deixe a todos de cara à banda, mas este é sempre muito mais interior do que exterior. E é por isso que o filme resulta tão bem, já que nos permite instalar à mesa como mais um comensal, cuja única diferença é que não saboreamos os pratos. Mas estes são tão descritivos que quase conseguimos sentir o sabor na boca. E é esse o grande poder do filme. Agora deixo-vos com o menu de A Festa de Babette, que muitas vezes é repetido em restaurantes pelo mundo: sopa de tartaruga com um vinho Amontilhado; panquecas de trigo-sarraceno com caviar e natas, acompanhado por champanhe; codorniz em cama de massa folhada com foie gras e molho de trufa, acompanhado por um Clos de Vougeot tinto; uma sala de endivida; e um McChicken. Mentirinha, o McChicken fui eu que acrescentei.

Título: Babettes Gæstebud
Realizador: Gabriel Axel
Ano: 1987

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