| CRÍTICAS | A Rosa Púrpura do Cairo

Não é que o amor pelo cinema clássico de Woody Allen tenha sido alguma vez um segredo, mas nunca ele foi tanto o tema do seu cinema quanto em A Rosa Púrpura do Cairo, em que uma estrela do cinema a preto e branco sai directamente do ecrã de cinema. Anos mais tarde, Arnold Schwarzenegger haveria de fazer o mesmo, mas para satirizar e desconstruir o cinema de acção, em O Último Grande Herói.

Em plena Grande Depressão, Mia Farrow é uma jovem com um marido abusivo e calão (Danny Aiello), que vai sobrevivendo entre trabalhos precários. O seu escape é o cinema, que consome regularmente, já que dentro da sala de cinema todos os seus problemas se desvanecem. Nem que seja por cerca de hora e meia. Até que em determinada sessão, Jeff Daniels, apaixonado por aquela pessoa que vê constantemente na plateia, decide quebrar a quadra dimensão e salta para o lado de cá. O filme dentro do filme transborda para… o filme.

Jeff Daniels vai então ver-se num mundo do qual só conhece as situações que lhe acontecem no seu próprio filme. A cena em que vai parar a uma casa de meninas é a melhor. Woody Allen resolve essas situações com o seu humor judaico, tão fatalista quando auto-depreciativo, mas também com o humor físico e absurdo do cinema mudo de Chaplin ou Tati. E depois há ainda o tal filme dentro filme, que também se chama A Rosa Púrpura do Cairo, e que fica a rodar infinitamente na sala de cinema, com os actores pendurados, à espera que Daniels decida regressar e onde o público não consegue resistir em aparecer para os observar, antecipando em alguns anos o advento dos reality shows. Estes momentos têm alguns dos melhores e mais inteligentes diálogos que Allen já escreveu em toda a sua carreira.

Mia Farrow vai então ver-se dividida entre a realidade e a ficção, entre o sonho e a fantasia, mas Woody Allen tem o desplante de lhe retirar o tapete e terminar tudo em anti-clímax, num final altamente cruel. Tudo isso para nos lembrar que a vida é injusta e não idealizada, como no cinema. É o fatalismo judaico do realizador a manifestar-se com toda a força. A Rosa Púrpura do Cairo é um dos seus McRoyale Deluxes maiores, de quando estava no auge da carreira.

Título: The Purple Rose of Cairo
Realizador: Woody Allen
Ano: 1985

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