| CRÍTICAS | Vidas Passadas

Vidas Passadas abre com um plano de três pessoas sentadas ao balcão de um bar, a tomarem uma bebida e a conversarem, enquanto duas outras comentam o que vêem, tentando decifrar quem é aquela gente. Duas delas têm origem asiática (Greta Lee e Teo Yoo), enquanto a terceira é um judeu de caracóis (John Magaro). Serão as duas primeiras um casal e a terceira um amigo? Ou será ao contrário? Serão turistas sul-coreanos a visitar os Estados Unidos e o terceiro é o guia? Mas se é assim porque estão a tomar um copo às tantas da manhã? Como nunca vemos esses observadores que comentam os actores de Vidas Passadas, é como se a realizadora Celine Song nos devolvesse a pergunta, tornando-nos naqueles observadores daquela cena, que é que o culminar de um filme sobre as relações humanas, a passagem do tempo e como as decisões que tomamos influenciam o destino das nossas vidas. E é uma óptima cena de abertura para Vidas Passadas.

O filme recua então até quando Greta Lee e Teo You eram amigos de infância, na escola primária. Os dois caminhavam juntos todos os dias da escola para casa, competiam pelas notas e, quando a primeira chorava, o segundo confortava-a. Era uma relação de proximidade, que será abruptamente interrompida quando a família dela emigra para os Estados Unidos. O filme avança uma dezena de anos e agora os dois já são adolescentes. Graças ao Facebook, voltam a encontrar-se e o skype aproxima-os novamente. Até que decidem não alimentar mais aquela relação à distância antes que traga mais desilusões às suas vidas, a primeira casa (com John Magaro, o terceiro vértice daquele triângulo que é logo desenhado na cena inicial) e o segundo arranja namorada. Mais uma dúzia de anos avança e, finalmente, os dois amigos de infância vão-se encontrar em Nova Iorque, para o desenlace desta relação que está sempre a prometer e nunca a cumprir.

No papel, Vidas Passadas parece uma espécie de comédia romântica, em que duas pessoas, destinadas uma à outra desde o início, vão apenas adiando o inevitável até ao grande reencontro final. E, na verdade, seria isso que aconteceria ao filme na mão da maioria dos realizadores. Mas Celine Song oferece-nos algo completamente diferente, uma vez que o que vai acontecer nas entrelinhas é… a própria vida a acontecer. Vidas Passadas é então um filme comovente, que presta atenção aos pequenos pormenores circunstanciais para criar significado, e que evita qualquer gesto melodramático para criar um sentimentalismo de papelão ou um pastelão a forçar o tearjerker.

Em Vidas Passadas há o mesmo sentimento de nostalgia (se bem que pelo presente, não pelo passado) que enforma todo o cinema de Wong Kar-Wai, mas há também aquele cinema de pequenos pormenores de Hirokazu Koreeda. É aquela sensibilidade oriental, que depois cruza com a cultura ocidental, se bem que, no seu espírito, Vidas Passadas é sempre muito mais europeu do que norte-americano. Celine Song esteve a ver Antes do Anoitecer e até há uma palavra coreana – in-yun – indicada para aqueles pequenos gestos acidentais (serão mesmo acidentais?) que acontecem entre duas pessoas que estão pré-destinadas a se encontrarem – os casacos que roçam ao cruzarem-se na rua ou as mãos que se tocam no varão do metro.

No final, também nos lembramos do Manhattan, de Woody Allen, quando Teo You visita finalmente Greta Lee em Nova Iorque, e os dois passam um dia a visitarem a Estátua da Liberdade ou a caminhar em plena golden hour pela marginal da cidade. Claro que também há em Vidas Passadas um certo toque hipster, ou não tivesse ele o selo da A24, mas no geral é um filme tão bem conseguido, tanto exterior como interiormente, que não há como não gostar deste McRoyal Deluxe.

Titulo: Past Lives
Realizador: Celine Song
Ano: 2023

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