| CRÍTICAS | Desconhecidos

Há uma espécie de ambiente de estranheza que trespassa todo o Desconhecidos e não é fácil perceber do que se trata. Talvez seja a luz difusa, como se estivéssemos a despertar de uma sonolência que ainda tolda a nossa percepção. Por isso, a cena em que Andrew Scott e Paul Mescal vão sair à noite e o realizador Andrew Haigh escolhe para a banda-sonora a muito apropriada Death of a party, dos Blur, é uma das mais importantes do filme, que ajuda a definir o tom de Desconhecidos – o de fim de festa, já mais para o lado de lá do que o de cá, em que a percepção já não é necessariamente a melhor.

No fundo, Desconhecidos é um filme de fantasmas e, por isso, essa fantasmagoria fica-lhe bem. Não que se limite a um género. O filme recusa linearmente uma catalogação e está sempre a escapar às gavetas em que a história o vai tentando colocar. Primeiro é o filme de fantasmas, depois a rom-com queer e depois ainda o coming of age. E, no entanto, todos esses rótulos são sempre demasiado curtos para o definir.

Andrew Scott é então um escritor e argumentista solitário, que trabalha a partir do seu apartamento que ocupa num prédio quase abandonado. Uma noite, o vizinho músico (Paul Mescal) bate-lhe à porta meio bêbado e faz-se a ele de forma mais ou menos descarada. Nessa noite nada acaba por acontecer, mas os dois rapidamente vão desenvolver uma amizade colorida.

Ao mesmo tempo, Scott começa a visitar os pais na casa desses. Demoramos a perceber o que se passa, porque Desconhecidos não é um filme directo e Andrew Haigh não se importa em não nos dar logo todas as informações de mão beijada. A primeira coisa que causa estranheza é a juventude dos pais perante a idade do filme e a segunda é a forma como, após uma aparente ausência prolongada, o acolhem em casa como se tivesse sido ontem que se viram pela última vez.

É aqui que o filme de fantasmas se manifesta, mas é também aqui que Desconhecidos se metamorfoseia num filme sobre confrontar os traumas do passado de forma a poder encerrar os episódios de ontem. Só que, inesperadamente, Andrew Haigh fa-lo de forma terna, muito racional, fazendo de Desconhecidos um filme extremamente emocional. A cena em que Andrew Scott dialoga com o pai (Jamie Bell) e acertam as contas do passado, sem confrontos violentos e muita compreensão, é particularmente tocante.

Desconhecidos é uma espécie de O Sexto Sentido para o século XXI, mas sem a parte do thriller, que o realizador substitui por doses industriais de sensibilidade. Desconhecidos é já um dos mais belos filmes do ano e um McRoyal Deluxe que merecia muito mais atenção em geral.

Título: All of Us Strangers
Realizador: Andrew Haigh
Ano: 2023

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