- Bom dia. Deseja ouvir um pouco acerca da palavra do Senhor?
- Sim, com certeza. Diga.
Eis um diálogo nunca dito por ninguém. Excepto Hugh Grant, depois de duas jovens mormones (Sophie Thatcher e Chloe East) lhe irem bater à porta de casa.
Que premissa pouco convincente, dirão vocês, desdenhando Herege. Mas não reneguem à partida uma ciência que desconhecem. Em sua defesa, Hugh Grant é um teólogo encartado e a sua intenção é de discutir e desafiar o raciocínio das jovens. O pior é que a coisa parece estar sempre a um passo de ir longe de mais. Spoiler alert: e á de ir mesmo.
Herege é um filme sobre a fé e a crença, especialmente numa perspectiva de confronto, estando do outro lado da barricada a lógica e a racionalidade. Herege é uma discussão determinada desde o primeiro segundo a ter um vencedor, não havendo cá espaço para nada daquelas coisas de concordar em discordar.
A principal arma de Herege é a palavra, mas os realizadores, Scott Beck e Bryan Woods, inscrevem. filme no registo do fantástico e do terror, utilizando os códigos do género. Primeiro, são os mais subtis: uma tempestade lá fora a dar ambiente lúgubre e uma casa antiga, tipo mansão assombrada. Depois, passo a passo, outros vão sendo destapados, num build up que vai aumentando a tensão e alimentando a nossa (e a das jovens) desconfiança: uma esposa que nunca aparece porque se calhar não existe, uma porta trancada com temporizador que só abre de manhã e uma suposta saída pela cave.
Durante muito tempo, Herege parece um thriller psicológico à antiga, suportado apenas pela dúvida, por portas trancadas e outros mecanismos práticos. Mas à medida que o argumento vai necessitar de sair dos becos sem saída onde se mete, Beck e Woods vão começar a forçar a ideia inicial. De repente, sem darmos por isso, estamos mergulhados no mais complicado e esquisito escape room de sempre, onde é necessário ter poderes de dedução sobre-humanos para conseguir sair. E nem sequer há uma motivação para alicerçar a premissa.
À medida que se aproxima do final, torna-se cada vez mais difícil aguentar a descrença. O que o salva é Hugh Grant. O amor, depois de anos a ser o galã favorito das comédias românticas, anda a gastar o crédito acumulado em Paddngtons e Oompa Loompas. E é ele que faz de Herege um Double Cheesebuger. Caso contrário, seria apenas mais um daqueles filmes independentes que acha que tem uma ideia muito inteligente e contorce-se em mil e uma voltinhas para a conseguir concretizar, tronando-se num mini-fenómeno em fóruns online de pseudo-intelectuais.
Título: Heretic
Realizador: Scott Beck & Bryan Woods
Ano: 2024