Todos os anos, chegamos a Dezembro, estou aqui entretida a tentar atingir o Goodreads Reading Challenge e as mensagens do Pedro começam a acumular-se no meu Messenger: Hey, toca a escrever esse top senão já sabes o que te acontece. Vejo isto da mesma forma que vejo a coruja verde do Duolingo: ligeiramente irritante, mas no fundo para o meu bem. É bom obrigar-me a reflectir sobre o que vi, gostei muito e pouco gostei ao longo do ano. É bom para justificar a quantidade estúpida de dinheiro que gasto para ver filmes em sala porque é preciso apoiar a indústria nesta fase menos boa. E é bom tentar escrever anualmente um texto na língua mãe que quase não uso para mais nada do que para criar incidentes internacionais quando explico que se diz RÚBEM, RÚBEM, CARALHO, mas que raio de atrofio seus caramelos de Manchester.
Daí ter respondido assim ao Pedro, quando vi a sua mensagem anual: Mas tu achas que o ter feito isto o ano passado e todos os anos antes desse te dão direito de explorar as riquezas da minha mente emersoniana? E, pelos vistos, sim.
Adiante.
O ano passado, enquanto concluía o top de 2023, senti que o deste ano seria óbvio. Duna – Parte 2 a coroar a lista, seguido de qualquer documentário obscuro sobre prácticas ancestrais e exóticas passado exclusivamente num pequeno festival do leste europeu e uma comediazinha, porque gosto de pensar que tenho sentido de humor e estimo a comédia enquanto Género Cinematográfico. O resto depois se via.
Ora bem. Spoiler alert: (tenho medo de perguntar como se diz isto em português, Pedro) [ndr: assim mesmo, spoiler alert] não só não tenho o Duna – Parte 2 no pódio (horror! Tragédia!), como apesar de ter passado quase todas as semanas a comer filmes deste ano, não consegui ser tão obscura nas minhas escolhas como me costumo orgulhar de ser. Analisando os dados, dois factores de influência se destacam: o primeiro, o não ter conseguido ir a festivais obscuros de cinema do leste europeu ou mesmo escandinavo, uma falha gravíssima da parte de qualquer cinéfilo que se preze; e segundo, o facto deste ano não termos tantos filmes de super-heróis como de costume em sala, dando oportunidade a uma quantidade surreal de coisas (que, em condições semelhantes a anos passados, teriam de ser encontradas dos recônditos mais escuros da internet, ao lado dos calmantes da Mona Lisa e de pequenas armas nucleares para uso como foguetes de casamento) a serem postas em sala durante períodos decentes, o que significa que muita, muita gente as viu, destruindo completamente as minhas credenciais de hipster especializada em cinema de ansiedade moral dos anos 80 polacos.
Mas estou feliz. Há muito tempo que a minha grande dificuldade nesta lista era encontrar coisas de que gostasse o suficiente para a encher. Desta vez tive mesmo tentada a colocar duplos números 5 e tal, como se fosse uma louca estouvada. E também consegui não colocar um único filme que, oficialmente, seja de 2023, ao contrário de outros que sabem quem são.
Sem mais demoras, agora que já preenchi o SEO do blog do Pedro para enganar o Google, aqui estão, na minha pouco humilde opinião que já viro frangos nisto há muitos anos e de acordo com os princípios do colégio eleitoral, os dez melhores filmes de 2024.
10º Lugar
Wallace & Gromit – A Vingança das Aves, de Merlin Crossinghan & Nick Park

O maior vilão do cinema de sempre está de regresso. Feathers McGraw, mestre do disfarce, espionagem, cybernetic warfare e heist, consegue finalmente escapar-se da prisão de alta segurança (ie, o Zoológico) a que foi submetido graças a Wallace e Gromit em As Calças Erradas, há mais de 20 anos atrás. Entretanto, Wallace tornou-se num tech bro que adora inventar coisas para solucionar problemas que não existem, fazendo este pequeno filme de animação stop-motion no melhor filme sobre Inteligência Artificial do Ano. Quando Wallace resolve criar um smart gnome, Nobbit, para ajudar Gromit no jardim, o caos, ajudado pela inteligência criminal de McGraw e falta de double authentication do Wallace, acontece.
Sinto que Feathers McGraw é incompreendido. Como pinguim não lhe podemos julgar a atracção por pedras reluzentes, que são uma parte ideal dos rituais de acasalamento na Antárctica. Espero que em breve a Aardman faça a coisa certa e nos dê a prequela de origem de Feathers. Para mim, o verdadeiro antagonista deste filme é Wallace, que vê toda a tecnologia como progresso positivo e a usa como substituto de tudo o que nos faz humanos. Justiça para Gromit.
9º Lugar
Challengers, de Luca Guadagnino

Homens suados a jogar ténis. A Zendaya com saias curtas. Uma banda sonora com laivos de noite dos noughties pelas mãos do Trent Reznor e Atticus Ross. Um pequeno sinal de mão que me lembra as batotices dos jogos de sueca do pessoal aqui da terrinha. Eu nem gosto de ténis, meus caros. Ou de churros. Mas uma mulher não é de ferro.
O meu facto preferido deste filme é que a mulher do argumentista Justin Kuritzkes é, nem mais nem menos, que a Celine Song, que escreveu e realizou um filme recentemente (Vidas Passadas) sobre um homem moreno que vem do passado para destruir um casal. Coincidências. Enquanto o filme de Song é esparso, subtil, muito focado na ideia de destino e muito casto, o guião de Kuritzkes é uma thirst trap de duas horas e pouco, que faz toda a mulher no espectro mais heterossexual da escala de Kinsey se querer identificar com uma bola de ténis para poder ser arremessada entre o Josh O’Connor e o Mike Faist. Ou então, se mais baunilha, um churro.
8º Lugar
Witches, de Elizabeth Sankey

Não vi tantos documentários este ano como queria (recuso-me a contar o que está no Netflix como documentários). Mas dos que vi, o novo filme de Elizabeth Sankey (que, em 2019, realizou o filme-ensaio Romantic Comedy) ficou-me na memória. Sankey fala na primeira pessoa da sua obsessão com bruxas, desde que em criança viu O Feiticeiro de Oz, e do seu desejo de ser vista como uma Bruxa Boa. Mas a sua gravidez e nascimento do primeiro filho levaram-na a ser internada numa instituição mental com depressão pós-parto. No contraste das expectativas sociais do que significa ser mãe e as suas experiências pessoais, Sankey mistura História, Cinema e relatos directos de outras mães que passaram por situações semelhantes para criar um filme poderoso em que a realizadora agarra a narrativa vigente e mostra, de forma vulnerável e emocional, que é preciso compreender que há muito mais nestas situações do que simples baby blues.
Fiquem avisados contudo – não é um filme leve, apesar de dever ser visionamento obrigatório. Disponível para ver em Portugal no MUBI, esse poço cinéfilo que também nos deu este ano uma das minhas pérolas de pódio.
7º Lugar
Bonecas em Fuga, de Ethan Coen

Dos poucos filmes que achei que tinha de ver antes de completar o meu top deste ano e que estavam disponíveis por meios absolutamente legais. Estava um bocado naquela em relação ao novo filme de Ethan Coen. Quase ninguém falou dele, as críticas são meh e desde 2008 que os Coen não me têm enchido as medidas. Mas como precisava de comédias no top e vi que a Margaret Qualley estava no elenco, resolvi dar-lhe uma oportunidade. E ainda bem.
Lésbicas. Mal-entendidos. Uma mala com conteúdos secretos que mafiosos querem de volta. Matt Damon. Um mafioso bom e um mafioso mau. O sotaque texano da Qualley. As tentativas frustradas da personagem de Geraldine Viswanathan de ler o seu livro de Henry James enquanto tudo e mais alguma coisa acontece à sua volta. Às vezes não são precisas grandes coisas para um filme ser decente, camaradas. Às vezes tudo o que queremos é um guião engraçado e subtexto zero, para limparmos o cérebro. E neste sentido, Bonecas em Fuga finaliza.
6º Lugar
Um Sinal Secreto, de Zoe Kravitz

Há nepo-babies e nepo-babies e chateia-me que certas pessoas, por serem filhas de quem são, se expressem artisticamente em áreas como a sétima arte, onde é já tão difícil ser alguém. Chateia, mas desculpo um bocadinho quando têm talento, o que parece ser o caso aqui. Na primeira longa que realiza, co-escrita com E.T. Feigenbaum (sem relação com Spielberg) – e que se iria chamar Pussy Island (parece-me que se pussy out da ideia…) -, Kravitz dirige com mão firme a história de um bilionário que convida estranhas para a sua ilha privada e, bem, coisas acontecem como costumam acontecer sempre que bilionários têm ilhas privadas. Com laivos de Foge e Midsommar – O Ritual, Um Sinal Secreto tem a indecência de nos dar um final moralmente ambíguo e uma reviravolta que se vê a léguas, mas para primeira longa mostra já uma voz de auteur que faz ver a muitos outros (tosse tosse Ridley Scott).
5º Lugar
Histórias de Bondade, de Yorgos Lanthimos

Sim, não foi tão bom como o Pobres Criaturas mas na minha recusa de colocar coisas de 2023 nesta lista, é aqui que fica o outro filme do Yorgos Lanthimos com a Emma Stone e o Willem Dafoe. São três curtas juntas, ligadas nem se percebe muito bem porquê ou por quem (fãs habituais do Lanthimos sabem que para gostar não se pode questionar), com tramas vindas directamente da weird wave Grega. Ou seja, Lanthimos colheita vintage. Não é para todos os paladares, mas caiu que nem ginginhas com copo de chocolate aqui na vossa camarada. São as três histórias fortíssimas? Claro que não. A primeira foi um aquecimento leve, umas chamuças feitas há dois dias atrás, um compreender que depois do Natal quase todas as minhas metáforas estão relacionadas com comida. Mas a segunda, meus caros… a segunda só por si ganhou este lugar no meu top. O Matt Damon do Lidl (nome legal, Jesse Plemons) numa reinterpretação freak desse clássico distópico que é a A Invasão dos Violadores? Canibalismo? Humor cara-de-pau (é assim pelos vistos, Pedro, que o Google quer traduzir deadpan e acho que o devemos deixar [ndr: sim, devemos])? Filhoses, rabanadas, fatias douradas, tudo regado com canela, de comer e chorar por mais. E a terceira história é sobre um culto e a Emma Stone dança (claramente um pré-requisito para fazer filmes com o Lanthimos). Vejam, vejam e não digam que vêm daqui.
4º Lugar
Duna – Parte 2, de Denis Villeneuve

Aqui ficou o meu amado Villeneuve, na sua sequela intelectual do Palpitações. Uma cinematografia de se babar por mais, a música não oscarizavel de Hans Zimmer a bombar e Chalamet a mostrar que sim, consegue ser um vilão decente, mas de tudo isso nos esquecemos quando APARECEM TRÊS MINHOCAS GIGANTES AO MESMO TEMPO. Qual atómicos de família, qual cavalgar a minhoca. Três minhocas. Gigantes. Ao mesmo tempo no ecrã. É para isto que os irmãos Lumière criaram o cinema.
Apesar de tudo – incluindo o ter visto às 9 da matina na primeira fila do IMAX, tendo apanhado um torcicolo que ainda não consegui bem resolver desde Março – não me tocou da mesma maneira que o primeiro. Talvez por agora ter lido o livro e saber o que ia acontecer. Talvez porque em termos de ficção científica, há todo um encanto quando o mundo nos está a ser mostrado pela primeira vez e isso ficou tudo na primeira parte. Ou talvez porque as TRÊS MINHOCAS GIGANTES só apareceram no ecrã durante uns 5 segundos num filme de duas horas e quarenta e seis minutos. Mas continuo a amar-te, Denis, por favor responde-me aos Whatsapps.
3º Lugar
Anora, de Sean Baker

Uma prostituta. Um rapaz com mais dinheiro que juízo. Mas isto é o mundo do Sean Baker, não do Garry Marshall, e em vez da Julia Roberts a ser fashionista, temos crises existenciais. Win.
Anora tem a estranha qualidade de ter sido o único filme deste ano que me fez rir abertamente no cinema. Talvez porque não há nada de que gosto mais do que histórias de amor que correm estupidamente mal. Barco afunda. A tipa envenena-se. O melhor amigo afinal gosta mais da outra. Adoro, adoro, adoro. Acrescente-se um guião inteligentíssimo, onde falam todos uns por cima dos outros, a Mikey Madison a suar talento por todos os poros e uma trama que é uma espécie de Diamante Bruto misturado com A Ressaca e laivos de Romeu + Julieta, mas com menos armas e mais bastões de baseball. Para mim, a grande surpresa do ano.
2º Lugar
A Substância, de Coralie Fargeat

Assim que vi o trailer de A Substância, sabia que ia gostar. Distopia estilizada, da realizadora Coralie Fargeat, a mesma que fez Vendeta há uns anos atrás? Demi Moore e Margaret Qualley? Enfiem-me directamente nas veias. Esta reflexão sobre o envelhecimento feminino – a desculpa perfeita para um senhor body horror – não é perfeita, longe disso. Mas as performances do elenco, a maneira elegantíssima em que as regras do jogo são definidas, a representação quase documentária do que é lidar com o serviço de atendimento de coisas que compras online… chef’s kiss.
Claro está, para toda e qualquer mulher que se preze, a verdadeira cena de horror é quando Elisabeth Sparks (Demi Moore) não se consegue ir encontrar com o amigo do passado que gosta dela como ela é presentemente, rugas e tudo. De facto, a pior coisa do envelhecimento enquanto entidade feminina (e falo de todo um poço de experiência de ter tido mais um aniversário há uns dias atrás) é a obrigação moral e social de ter de sair com homens da minha faixa etária em vez de cópias pirata do Harris Dickinson. Tenhamos força, camaradas mulheres de uma certa idade.
1º Lugar
Guerra Civil, de Alex Garland

Um dos problemas de ver muitos filmes é que, passados uns tempos, torna-se difícil encontrar coisas que se entranhem mesmo na nossa mente. Filmes que nos deixem um bocado abananados, assim a modos que para o estúpido, a deixar cair a baba enquanto olhamos vazios para os créditos finais. E eu até que tenho uma relação complicada com os filmes anteriores do Alex Garland (pelos vistos, ele também, já que anunciou que este seria o seu último filme na cadeira de realizador). Mas Guerra Civil ficou-me gravado na memória de uma maneira que seria injusto pôr qualquer outro filme aqui neste lugar. Vendo bem, tem todos os ingredientes de que gosto. Distopia. Moralidades cinzentíssimas e questionamento de ética da representação. Metáforas. Ligações óbvias e menos óbvias com a contemporaneidade. Personagens deliciosamente pouco politicamente correctas (Wagner Moura e a sua interpretação do jornalista Joel, viciado na adrenalina das zonas de guerra). Kirsten Dunst a mostrar na cara que sim, já trabalhou com o Lars von Trier e sobreviveu. Um final de lamber os dedos. E neste ano de eleições americanas (eu sei, todos preferimos esquecer), um filme que se recusa a explicar que lado é qual (e tantos críticos se irritaram com isto, quando para mim é um dos pontos fortes da coisa) tem testículos, meus caros. Quase que me faz perdoar o Garland pelo Men. Quase.
Coisas que vi, gostei, mas não chegaram ao top 10
Conclave. Emilia Pérez. Herege. Blink (o doc da Nat Geo). Tornados. Alien: Romulus. Amor em Sangue. I saw the TV Glow.
Coisas que vi este ano, gostei muito, mas o IMDB diz-me que são do ano passado
Rotting in the Sun. Ficção Americana. Pobres Criaturas. A Quimera. Lee Miller – Na Linha da Frente.
Coisas que não vi a tempo, mas que se calhar iam entrar no top
O Brutalista. Grand Theft Hamlet. Tudo o que Imaginamos Como Luz Two strangers trying not to kill each other. Vampira Humanista Procura Voluntário Suicida. On becoming a guinea fowl.
Coisas que me desiludiram
Desconhecidos. Priscilla. Assassino Profissional. O Coleccionador de Almas. Divertida Mente 2. Furiosa: Uma Saga Mad Max. Babygirl. A Different Man. Dahomey.
Coisas que odiei
Gladiador 2. (Não mudes, Ridley Scott)
Coisas que não posso odiar porque foram “uma experiência”
Poutporri de outras coisas boas deste ano
Todos os memes do Luigi Mangione que me levaram ao colinho durante este Dezembro sofrido; o videoclip da Charlie XCX com a Billie Eilish; Guaxinins a ficarem populares com o Pedro Pedro Pedro; a série Fallout; o partido Conservador ter perdido à grande nas eleições britânicas; o Sporting-Benfica deste domingo; todos os memes do Megalopolis; o Diogo Costa a defender 3 penaltis; o meme do sad hamster; Portugal a mostrar ao mundo como se fazem vídeos de cometas.