Afinal, Emir Kusturica ainda está vivo (artisticamente, entenda-se). Depois do fenómeno dos anos 90 (em grande parte responsável por aquele flagelo que foi a invasão dos festivais de world music por bandas de música klezmer), o bósnio (ou será sérvio?) andou perdido a repisar as suas próprias pegadas (A Vida é um Milagre e Promessas, que nem sequer teve estreia comercial Portugal) e no masturbatório Maradona, documentário que supostamente era sobre o astro argentino, mas que afinal era sobre o seu próprio umbigo. O realizador parecia mais interessado na agricultura, na sua aldeia Kustendorf (e no respectivo festival de cinema) ou a acompanhar a No Smoking Orchestra.
Até que chega Na Via Láctea, depois de uma produção atribulada de três anos, e podemos afirmar que Kusturica está de volta. Nem que seja por o filme ter Monica Bellucci, razão mais que válida para se prestar atenção a qualquer filme. Mesmo que seja um com um argumento de sete horas sobre a técnica de estucar uma parede. E Kusturica é que não é parvo nenhum, pois aproveita a presença da diva italiana para fazer de actor, no seu primeiro filme em que acumula ambas as funções.
Tal como em A Vida é um Milagre e em Promessas, Kusturica revisita aqui o seu próprio cinema, aquele em que o caos felliniano é convocado e adaptado para a realidade balcânica, com o forrobodó cigano, muito turbo-folk e humor físico. Está lá novamente a Guerra da Bósnia como pano de fundo e foi ela que fez de Kusturica o pateta que se tornou no leiteiro da pequena vila onde vive. Kusturica é tipo uma princesa Disney, que tem como companheiro um falcão e um burro e a quem as forças da Natureza parecem ajudar. O bósnio estica este bestiário a outros animais, como os gansos do costume e um urso com quem partilha uma laranja com a boca só porque pode. São estes elementos metidos à força no filme que parecem sempre deslocados e demasiado forçados. Parece Kusturica a tentar ser à força Kusturica, como se o seu próprio cinema se tivesse tornado num monstro demasiado grande e devorado o seu criador.
A ingenuidade de Kusturica é tão grande que apenas é comparável à beleza de Monica Bellucci, uma refugiada que chega à vila como noiva por catálogo, mas que vai disputar o seu coração juntamente com a bela Sloboda *suspiro* Micalovic. A primeira metade de Na Via Láctea chega a ser confrangedor. Depois, na segunda parte a coisa melhora consideravelmente, mas nem por isso o suficiente para considerarmos este filme um digno sucessor de Gato Branco, Gato Preto, o último bom filme do bósnio. A guerra torna-se incontornável e Kusturica e Bellucci têm de fugir aos soldados que os perseguem, numa metáfora em ambiente de realismo mágico ao humor verdadeiro.
Com essa faceta onírica, Kusturica aproxima-se de Arizona e nunca antes estivera tão perto desse que é o seu trabalho mais subvalorizado. No final, rebenta literalmente com o seu bestiário, lançando um rebanho de ovelhas num campo minado que resulta numa catadupa de explosões de carcaças a voarem que servem de metáfora final a Na Via Láctea: um filme com muito fogo de artifício, mas pouco concentrado. Afinal Kusturica está vivo, é verdade. Mas este Cheeseburger não faz esquecer o autor que foi uma das revelações da década de 90.
Título: On the Milky Road
Realizador: Emir Kusturica
Ano: 2016