Houve um momento, que provavelmente durou uma temporada, em que parecia que Donas de Casa Desesperadas poderia ser uma coisa interessante. A ideia de que por detrás de uma grossa camada de verniz suburbano havia um lençol freático de merda parecia ter substância suficiente para sustentar a série por muitos e bons anos. O tom burlesco que lhe dava alguma leveza cómica era, aliás, o maior trunfo da série, porque fazia o contraponto com a morbidez de esta ser narrada por uma morta omnisciente. Mas rapidamente ela se transformou numa paródia dela própria e daí até à sua irrelevância foi um longo e fatídico caminho.
Big Little Lies, mais do que pegar onde Donas de Casa Desesperadas ficou, parece querer mostrar como é que se faz uma coisa como deve ser com essa premissa. E essa aposta é ganha sem sombra de dúvida. Esta é uma daquelas séries que, não sendo perfeita, é difícil precisar exactamente o que a prejudica.
Em primeiro lugar trata-se de uma mini-série. O Triângulo das Bermudas onde a maior parte das séries vai para morrer é corajosamente evitado. Há uma história para contar e essa história é contada em sete episódios mesmo que esticar isto por mais temporadas pudesse ser financeiramente vantajoso. Louvado seja o bom senso.
Depois, o cenário. A acção desenrola-se em Monterey, na Califórnia, que é aqui um bicho muito diferente do que costuma servir de pano de fundo aos romances de Steinbeck. Monterey é aqui um lugar ultra-rico, liberal q.b., fechado sobre si mesmo e profundamente egoísta. Uma espécie de mega-comunidade fechada para os ricos que são liberais enquanto isso não os afecta. É aqui que as personagens transformam pequenas quezílias em incidentes diplomáticos que, sabemos logo desde o primeiro episódio, vão terminar num homicídio. É nas pequenas coisas que ocupam os dias às personagens que se reflectem os problemas gigantescos que as assombram: depressão, violência, divórcio, ressentimento, ganância e falhanços de vida monumentais. São estas coisas à luz das quais os pequenos dissabores do quotidiano são promovidos a uma nova e enorme escala. Episódio a episódio a claustrofobia vai aumentando (graças, também, a uma banda-sonora irrepreensível) e a sensação de que uma desgraça se aproxima, mas também de que essa desgraça é só mais uma entre tantas outras num passado escondido, torna-se impossível de ignorar.
Não prejudica nada, claro, ter Reese Witherspoon, Nicole Kidman e Shailene Woodley em topo de forma. Até Alexander Skarsgard consegue, de vez em quando, fazer-nos não pensar em vampiros, mas cheira-me que isso se deve mais ao facto de contracenar maioritariamente com Nicole Kidman (que, a representar assim, pode continuar a bater palmas como muito bem entender). Mesmo quando as personagens entram num registo mais burlesco ou mais pateta e nos fazem rebolar os olhos para trás, isso acontece não porque a escrita é forçada, mas porque aquelas personagens são assim mesmo e não custa acreditar que correspondam a pessoas verdadeiras. Aqui, ao contrário de Donas de Casa Desesperadas, quando a camada de verniz sai, o lençol freático de merda que fica a descoberto não soa a farsa, soa a verdadeiro e acreditável. E não se pede muito mais do que isso de uma série.