Diz a lenda que, quando Crumb – o documentário de Terry Zwigoff sobre o ilustrador norte-americano Robert Crumb – foi exibido para consideração aos Oscares nesse ido ano da graça do Senhor de 1994, os críticos interromperam a sessão ao fim de vinte minutos, completamente em choque. É certo que estamos todos anestesiados pelo sensacionalismo e pelo excesso de informação da internet e dos tablóides (olá Correio da Manhã), mas quantas vezes temos possibilidade de vermos alguém falar na primeira pessoa dos seus caprichos (desvios?) sexuais, doença mental e consumo de drogas?
Robert Crumb, autor dos comics underground que conseguiu furar até ao mainstream, é conhecido sobretudo por três trabalhos: a ilustração keep on trucking, um autêntico ícone dos anos 60; a capa de Cheap Thrills, o álbum da Janis Joplin; e o debochado Fritz, the Cat, cujo filme Crumb renega, mas que deu muito que falar. Se Crumb fosse um documentário sobre a obra do ilustrador, isto seria a sinopse perfeita do seu trabalho. Mas um biopic é também a vida do retratado. E esta, além de se confundir com a obra de Crumb (como a maioria da obra dos artistas, esta também é altamente biográfica), envolve uma série de coisas para as quais podemos não estar preparados.
Crumb está assim cheio de drogas, fetiches sexuais, misoginia, racismo e outros valores duvidosos, que Richard Crumb confessa na primeira pessoa com grande naturalidade. É que elas fazem parte da sua persona e, consequentemente, dos seus desenhos. A sua obra é um reflexo claro de uma infância às mãos de um pai abusador, um recalcamento sexual e à companhia de dois irmãos com problemas mentais. E é quando estes entram em cena – Maxon, que vive numa casa quase sem nada e que se senta a meditar numa tábua com pregos diariamente, e Charles, recluso no seu próprio quarto e que veria a suicidar-se pouco depois da estreia do filme – que a coisa ganha um outro alcance. Porque uma coisa é ver Crumb e a sua companheira a falarem das drogas que tomavam, das traições dele ou dos gostos sexuais; outra coisa é vê-los a falar de como molestavam mulheres na rua – especialmente asiáticas – ou de como tinham que recalcar os impulsos homicidas. E é tudo dito com tamanha naturalidade, que chegamos a questionarmos se não seremos nós os errados, num mundo de anormalidade.
Com isto, a obra de Robert Crumb assume-se quase como uma metáfora da normalidade escondida de uma certa americana. Não é por acaso que David Lynch, autor que se especializou em esgravatar na suburbia norte-americana até chegar ao ser lado mais negro, surge como o produtor do filme. As suas figuras tornam-se assim grotescas, com tanto de Brueghel, como de Goya ou Paula Rego. Quanto ao realizador, Terry Zwigoff, amigo de longa data do próprio Crumb com quem partilha o gosto pela música norte-americana antiga (e que é peça habitual dos seus outros filmes, de Mundo Fantasma a Louie Bluie), sofreu em conseguir colocar o projecto de pé e passou por uma forte depressão. E esse sentimento talvez o tenha ajudado em montar este documentário, que tão fundo entra na vida e obra de Robert Crumb e como normalmente poucos biopics o fazem. Este Le Big Mac é um dos grandes documentários da história da sétima arte.Título: Crumb
Realizador: Terry Zwigoff
Ano: 1994