| CRÍTICAS | Rendição Incondicional

Durante um considerável período de tempo da minha juventude, Rendição Incondicional foi, de longe, o melhor filme de sempre. Porque tinha o Van Damme em modo mauzão, quando estávamos habituados a vê-lo como o mocinho que salva o dia; e porque tinha o Bruce Lee a regressar do mundo dos mortos para treinar, física e espiritualmente, o miúdo que iria derrotar o belga.

Hoje em dia, vemos Rendição Incondicional e já nada é o mesmo, porque o filme envelheceu muito mal. Contudo, não deixa de ser um dos mais curiosos títulos da filmografia de Van Damme. Primeiro, porque é o seu primeiro filme, aquele em que se apresentou ao mundo dos cinéfilos que gostam de filmes de porrada; e segundo porque é realizado por Corey Yeun, profícuo realizador de Hong Kong de filmes e artes marciais, que foi um dos co-realizadores daquela fraude chamada A Torre da Morte, que é uma suposta sequela de O Último Combate de Bruce Lee, mas que na verdade é só um filme feito com outtakes de outros filmes de Bruce Lee.

Rendição Incondicional é, à superfície, uma espécie de teen movie, sobre um jovem (Kurt McKinney) aspirante a mestre do kung fu (numa altura em que os Estados Unidos se tinham apaixonado pelas artes marciais), que tem que se mudar para Seatlle depois do pai ter que fechar o seu ginásio, sob as ameaças de uma associação criminosa que tinha um russo malvado como guarda-costas (nem mais nem menos que Jean-Claude Van Damme). Quando estes chegam a Seatlle e ameaçam o irmão da namorada de McKinney ele vai ter que intervir, mesmo sendo vítima de bullying por parte dos seus amigos, e pôr em prática tudo o que aprendeu com o fantasma de Bruce Lee (interpretado por Tae-jeong Kim, um tipo que tem várias semelhanças com Lee que até mete impressão: ambos são bípedes e o branco dos olhos é quase do mesmo tom).

Além de uma mão cheia de estereótipos relacionados com as artes marciais que proliferaram nos filmes de kung fu dos anos 80, Rendição Incondicional ainda faz questão de meter como sidekick um tal de J.W. Fails (nome tão sugestivo que até poderia ser falso), que além de dar uma nova definição ao conceito de overacting, importa outros tantos estereótipos sobre o que era ser afro-americano nessa década (incluindo vários números gratuitos de breakdance). Rendição Incondicional ignora completamente qualquer regra argumentativa e segue como se não fosse nada com ele, continuando a introduzir personagens até há hora de filme, como se elas sempre lá estivessem e fosse a coisa mais natural do mundo.

Mas o que realmente interessa em Rendição Incondicional é que, lá no fundo, é um filme sobre a ameaça comunista, um daqueles filmes que serve de metáfora à Guerra Fria que então se vivia. Rendição Incondicional é o Rocky IV, mas com kung fu em vez de boxe, em que um russo malvado (Van Damme lol) vem perturbar a paz do mundo livre. Isso nunca é propriamente explorado, a não ser no poster do filme(!), e soa sempre melhor como ideia do que na prática. O que é certo é que neste filme todo, com interpretações e diálogos dignos de teatrinho de escola, Van Damme é o único que parece levar a coisa a sério e está noutro nível. E é ele, com a sua espargata da praxe e meia-dúzia de rotativos, que vale quase por competo o Cheeseburger final.

Título: No Reatreat, No Surrender
Realizador: Corey Yeun
Ano: 1986

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